Questões de Concurso
Sobre flexão verbal de tempo (presente, pretérito, futuro) em português
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O QUE DIZEM AS CAMISETAS
Carlos Drummond de Andrade
1º Apareceram tantas camisetas com inscrições, que a gente estranha ao deparar com uma que não tenha nada escrito.
2º – Que é que ele está anunciando? – Indagou o cabo eleitoral, ___________, – Será que faz propaganda do voto em branco? Devia ser proibido!
3º – O cidadão é livre de usar a camiseta que quiser – ponderou um senhor moderado.
4º – Em tempo de eleição, nunca – retrucou o outro.
5º A discussão ia rolar, quando apareceu Christiane Torloni, pedestre, ostentando bem visível, no peito, o nome de Eduardo Mascarenhas. Todos ficaram deslumbrados.
6º – Nessa eu votaria até para presidente. Da República, do Banco Central, da ONU, de qualquer troço – exclamou outro.
7º – Ela não é candidata.
8º – E precisa?
9º Ficou patente que as pessoas reparam mais no rosto do que na inscrição, embora a falta de inscrição provoque a idéia de que falta alguma coisa – a identidade, o nariz, sei lá.
10 Vi na rua Sete de Setembro um homem que trazia a inscrição “Guiné-pipi” na frente e nas costas.
11 – Candidato a vereador? – Perguntei. – De que partido?
12 – Não senhor. Erva contra reumatismo. Quer experimentar? É um porrete.
13 – Obrigado, amigo. O dr. Nava já cuida do meu.
14 – Mas qualquer problema, o senhor não tenha cerimônia. É só dizer, que eu falo com os colegas, conforme o caso. Ou o senhor mesmo fala, se encontrar com um deles.
15 – E como é que eu vou saber?
16 – Pela camiseta, é claro. Tem o Cipó- Azougue, que é balaço contra eczema, aliás, pessoalmente, é um cara ótimo. O Beldroega (faz pouco ele passou por aqui) toma conta do fígado e depura o sangue. Do Sete-Folhas, que é até meu vizinho, vejo que o senhor não carece, pois é para emagrecer. Agora, convém não esquecer o Boldo. Lá um dia a gente tem uma ressaca, e o Boldo resolve.
17 Vi que as camisetas da medicina natural são numerosas, mas as de uísques, vinhos alemães, motos, motéis, cigarros, antigripais, cursinhos, judô, budismo, loteria, jogo de búzios, etc. não fazem por menos. Hoje em dia não há produto que não tenha, além dos comunicadores remunerados, outros absolutamente gratuitos, e estes são maioria. Todo mundo anuncia alguma coisa, e a camiseta é o cartaz na pele. Sendo de notar que há tendência para anunciar até no bumbum. Mas este é um ramo ainda experimental (...).
18 Quis empreender pesquisa de campo no domínio das inscrições no anverso e no reverso do vestuário. _________ porque teria de elaborar um código de classificação muito complexo, tamanha a variedade de interesses humanos que se refletem numa etiqueta comercial, industrial, política, esportiva, religiosa, onírica. Hoje em dia a camiseta serve para tudo, até (não principalmente) para vestir. E acompanha também a veloz deterioração das coisas, sinal de finitude hoje mais visível do que nunca. _______, como as coisas acabam cada vez mais depressa! Não há mais condições para gravar palavras eternas em muros de catedral. Hoje estampam-se recados em camisetas descartáveis. Como esta crônica.
Moça deitada na grama. Rio de Janeiro, Record, 1987. p. 38-40.
O Desaparecido
Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
BRAGA, Rubem. A Traição das Elegantes . Rio de Janeiro:
Editora Sabiá. 1969, p. 112.
O Desaparecido
Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
BRAGA, Rubem. A Traição das Elegantes . Rio de Janeiro:
Editora Sabiá. 1969, p. 112.
Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo? Então você não é ninguém?
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo.
(Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana, Crônicas. Editora do autor, Rio de Janeiro, 1960)
“Assim ficara sabendo que não era ninguém..." (4°§)
Texto para responder à questão.
MAIS UM ATAQUE DISFARÇADO CONTRA A NOSSA AMAZÔNIA
A intenção de domínio sobre a Amazônia, com seus 830 mil quilômetros quadrados, dos quais mais de 65 por cento nosso, aparece seguidamente, sob os mais incríveis disfarces. A iniciativa parte sempre de alguma ONG, ligada a poderosos grupos internacionais, que surge como salvadora da Pátria, para “preservar" a floresta e suas riquezas. Já se viu esse filme. Quem não lembra quando uma ONG conseguiu transferir para o Japão a propriedade do nome “Cupuaçu"? Agora surge mais um desses ataques, escamoteados sob boas intenções e com apoio de governos vizinhos. O presidente da Colômbia, Juan Manoel Santos, caiu na catilinária da ONG, Fundação Gaia Internacional e mandou ao Congresso projeto criando um “corredor ecológico" dentro da Amazônia, que ligaria os Andes ao Oceano Atlântico. Esse corredor seria intocado e suas riquezas eternamente não violadas. Assim, aparentemente, seria uma ideia positiva, não fosse a Gaia uma entidade bancada por dinheiro de várias Nações, todas elas muito aflitas para botar a mão em alguma coisa próxima dos 230 trilhões de dólares das riquezas que a maior floresta do mundo comporta.
O presidente colombiano (isso mesmo, do país que até recentemente era dominado pelo narcotráfico e ainda se mantém como um dos maiores exportadores de cocaína do mundo), não consegue resolver seus problemas internos, mas quer interferir nos vizinhos, impondo um corredor, inclusive dentro do Brasil, onde ninguém entraria. Como ninguém? Claro que a exceção seria para as ONGs internacionais; para representantes da Igreja, que viriam “catequizar" os índios e para outros estrangeiros. A proibição seria para os brasileiros, que não poderiam usar parte do seu território. Nosso governo, até agora, não chiou contra esse crime. O que, aliás, não é surpresa alguma! (Correio de Notícias, 21/07/2015)
O emprego do futuro do pretérito em “seria", “viriam" e “poderiam" indica ações:
O Brasil tem água potável suficiente para abastecer cinco vezes a população da Terra. Mas a distribuição pelo território nacional não é equilibrada.
Os números sobre os recursos hídricos brasileiros são um exagero. Os rios que cortam o Brasil carregam 12% do total de água doce superficial do planeta - o dobro de todos os rios da Austrália e Oceania, 42% a mais que os da Europa e 25% a mais que os do continente africano.
Mesmo contando com as épocas de seca, em que os rios reduzem muito sua vazão, temos água para satisfazer as necessidades do país por 57 vezes. Com todo esse volume, seria possível abastecer a população de mais cinco planetas Terra - 32 bilhões de pessoas -, com 250 litros de água para cada um por dia.
Mas, como ocorre em outras partes do mundo, aqui também os recursos hídricos são mal distribuídos: 74% de toda água brasileira está concentrada na Amazônia, onde vivem apenas 5% da população. Uma característica que as bacias têm em comum: todas sofrem com algum tipo de degradação por causa da ação do homem.
A fim de gerenciar os recursos hídricos brasileiros, a Agência Nacional das Águas (ANA) divide o país em 12 regiões hidrográficas, que correspondem a 12 bacias. É com base nessa divisão que o governo federal calcula e gerencia a relação entre a oferta e a demanda de água no país. A gestão da rede hídrica nacional é fundamental para evitar a destruição dos recursos naturais e a repetição dos episódios de racionamento e blecaute que afetaram algumas regiões do país mais de uma vez.
A cada segundo, o Brasil retira de seus rios somente 3,4% da vazão total. Mas apenas pouco mais da metade disso é efetivamente aproveitada e não retorna às bacias. A região hidrográfica que mais consome água é a do Paraná, responsável por 23% do total. Na região Atlântico Nordeste Oriental, onde a maioria dos cursos de água é intermitente, as retiradas superam a disponibilidade hídrica.
Em algumas localidades, a água disponível por habitante não supera os 500 metros cúbicos por ano. Isso significa que cada cidadão da região sobrevive com um volume de água equivalente a um terço do volume que caracteriza o estresse hídrico, segundo a ONU: 1,7 mil metros cúbicos por ano. Como ocorre no restante do mundo, a maior parcela da água consumida no país vai para a agricultura.
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/conteudo_261013.shtml?func=2. Acesso em 20/11/2015.
“A cada segundo, o Brasil retira de seus rios somente 3,4% da vazão total. Mas apenas pouco mais da metade disso é efetivamente aproveitada e não retorna às bacias".
Se os verbos grifados fossem conjugados no pretérito imperfeito do indicativo, a construção ficaria:
Numa época em que tantos parecem ter tanta certeza sobre tudo, vale a pena pensar no prestígio que a dúvida já teve. Nos diálogos de Platão, seu amigo Sócrates pulveriza a certeza absoluta de seus contendores abalando-a por meio de sucessivas perguntas, que os acabam convencendo da fragilidade de suas convicções. Séculos mais tarde, o filósofo Descartes ponderou que o maior estímulo para se instituir um método de conhecimento é considerar a presença desafiadora da dúvida, como um primeiro passo.
Lendo os jornais e revistas de hoje, assistindo na TV a entrevistas de personalidades, o que não falta são especialistas infalíveis em todos os assuntos, na política, na ciência, na economia, nas artes. Todos têm receitas imediatas e seguras para a solução de todos os problemas. A hesitação, a dúvida, o tempo para reflexão são interpretados como incompetência, passividade, absenteísmo. É como se a velocidade tecnológica, que dá o ritmo aos nossos novos hábitos, também ditasse a urgência de constituirmos nossas certezas.
A dúvida corresponde ao nosso direito de suspender a verdade ilusória das aparências e buscar a verdade funda daquilo que não aparece. Julgar um fato pelo que dele diz um jornal, avaliar um problema pelo ângulo estrito dos que nele estão envolvidos é submeter-se à força de valores já estabelecidos, que deixamos de investigar. A dúvida supõe a necessidade que tem a consciência de se afastar dos julgamentos já produzidos, permitindo-se, assim, o tempo necessário para o exame mais detido da matéria a ser analisada. A dúvida pode ser o primeiro passo para o caminho das afirmações que acabam sendo as mais seguras, porque mais refletidas e devidamente questionadas.
(Cássio da Silveira, inédito)
Lá viveu, também, Thomas Bernhard (1931-1989), um dos mais agressivos escritores do século passado − e alguém que, radicado na Áustria desde criança, dedicou sua vida a falar mal do país, a ponto de tornar esse mal-estar um dos pontos centrais de sua arte. Um dos itens de seu testamento foi a proibição expressa de que peças suas fossem representadas e seus textos inéditos fossem publicados no país − o mesmo país que, hoje, subsidia a tradução de seus livros para o resto do mundo. Podemos nos perguntar como um projeto aparentemente tão limitado − que um leigo creditaria a uma mera expressão de ressentimento confessional − possa de fato se transformar em grande literatura. Em livros como O náufrago, Árvores abatidas e Extinção, um narrador exasperado e aparentemente sem rumo, que se realiza em frases a um tempo irresistíveis e intermináveis, vai como que destruindo a golpes de medida impaciência qualquer possibilidade de remissão humana.
Um exemplo: “Num hotel do centro de Viena, cidade que sempre tratou pensadores e artistas com a maior falta de consideração e desfaçatez possíveis e que poderia com certeza ser chamada de o grande cemitério de fantasias e das ideias, porque dilapidou, desperdiçou e aniquilou um número mil vezes maior de gênios do que aqueles aos quais de fato emprestou fama e renome mundial, foi encontrado morto um homem que, com absoluta clareza de pensamento, deixou registrado num bilhete o verdadeiro motivo de seu suicídio, bilhete que, então, prendeu ao paletó." O trecho é de um dos textos que compõem O imitador de vozes.
Distinta de suas narrativas mais conhecidas, a obra mantém intactas a linguagem e a verve de Thomas Bernhard. Há um humor sombrio em todas as páginas, mas nada se reduz a uma anedota − o leitor ri de algo que não consegue controlar ou definir.
Este meticuloso painel do desespero se compõe de breves relatos aparentemente jornalísticos, casos curiosos ou inexplicáveis. O narrador dessas histórias, em que não há quase nada de onírico ou alegórico, frequentemente é uma representação coletiva: “chamou-nos a atenção", “conhecemos um homem". Esse “nós", que nunca se apresenta, é a representação de um coro, uma voz coletiva, o temível “senso comum" − ou a voz da Áustria, que Thomas Bernhard transformou numa província asfixiante e opressiva e numa das obras mais desconcertantes da literatura ocidental.
Alterando-se as formas verbais da frase acima, a correlação entre as novas formas, considerando a norma culta, está correta em:
O verbo flexionado nos mesmos tempo e modo que o sublinhado acima encontra-se em:
2 Um quarteirão adiante, a sede mundial de um dos ícones da moda, instalada em um palácio renascentista, garante a autenticidade de sua marca, símbolo de elegância e nobreza. O palácio é frequentado por poucos. A ponte é um formigueiro humano. Verdadeira ou falsa, todos usam a mesma marca.
3 A publicidade associa uma bolsa a um estilo de vida como se dentro dela viessem a felicidade e o refinamento. Quem não tem acesso ao produto verdadeiro compra na calçada, ao preço do camelô, a ilusão de uma vida que não tem e não terá, mas encena como real. Assim é se lhe parece.
4 Uma celebridade vende a peso de ouro sua imagem para associar seu nome a uma determinada marca. Marcas famosas não precisam produzir beleza ou qualidade. O que elas produzem passa a ser o padrão de beleza e qualidade. Seu valor é simbólico, muito mais do que real. Símbolos cobiçados mesmo sabendo tratar-se de uma contrafação. Mas um dia o feitiço se volta contra o feiticeiro.
5 Anders Breivik, assassino de jovens na Noruega, sinistra celebridade pela carnificina que provocou, ostenta orgulhoso as camisas de renomada marca. No manifesto psicótico que lançou na rede sugere que gente refinada como ele deveria vestir-se assim. Sem arrependimentos, apresenta-se como padrão de elegância. A tentativa da empresa dona da marca de impedi-lo de vestir sua camisa fracassou. Na Noruega, o tratamento dado aos presos, por mais repugnante que tenha sido o crime, é respeitoso. Desastrosa reversão de expectativas, uma anti-propaganda de alcance mundial.
6 Os promotores de marcas famosas sabem − e é a chave do seu sucesso − que as necessidades têm limites, mas os desejos, não. Não previram que assassinos, corruptos, mafiosos, cada vez mais numerosos e milionários, se enfeitariam com suas grifes na tentativa de ascender a uma suposta elite. Agora a publicidade terá que rever suas estratégias e proteger as marcas desvinculando-as de rostos − que ninguém sabe o que farão −, renunciando à sua vocação de vendedora de sonhos e aproximando-se do mundo real, terreno mais seguro e convincente.
(OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. O Globo: 17/09/2011.)
Será que sou bobo?
Walcyr Carrasco
Ando perdido em uma selva de palavras. Existem termos destinados a dar a impressão de que algo não é exatamente o que é. Ou para botar verniz sobre uma atividade banal. Já estão, sim, incorporados no vocabulário. Servem para dar uma impressão enganosa. E também para ajudar as pessoas a parecer inteligentes e chiques porque parecem difíceis. Resolvi desvendar algumas dessas armadilhas verbais.
Seminovo — Já não se fala em carro usado, mas em seminovo. Vendedores adorarn. O termo sugere que o carro não é tão velho assim, mesmo que se trate de uma Brasília sem motor. Ou que o câmbio saia na mão do comprador logo depois da primeira curva. E pura técnica de vendas. Vou guardá- lo para elogiar uma amiga que fez plástica. Talvez ela adore ouvir que está “seminova". Mas talvez...
Sale — É a boa e velha liquidação. As lojas dos shoppings devem achar liquidação muito chula. Anunciam em inglês. Sale quer dizer que o estoque encalhou. A grife está liquidando, sim! Não se envergonhe de pedir mais descontos. Pode ser que não seja chique, mas aproveite.
Loft — Quando o loft surgiu, nos Estados Unidos, era uma moradia instalada em antigos galpões industriais. Sempre enorme e sem paredes divisórias. Vejo anúncios de lofts a torto e a direito. A maioria corresponde a um antigo conjugado. Só não tem paredes, para lembrar seu similar americano. É preciso ser compreensivo. Qualquer um prefere dizer que está morando em um loft a dizer em uma quitinete de luxo.
Cult — Não aguento mais ouvir falar que alguma porcaria é cult. O cult é o brega que ganhou status. O negócio é o seguinte: um bando de intelectuais adora assistir a filmes de terceira, programas de televisão populares e afins. Mas um intelectual não pode revelar que gosta de algo considerado brega. Então diz que é cult. Assim, se pode divertir com bobagens, como qualquer ser humano normal, sem deixar de parecer inteligente. Como conceito, próximo do cult está o trash. E o lixo elogiado. Trash é muito usado para filmes de terror. Um candidato a intelectual jamais confessa que não perde um episódio da série Sexta-Feira 13, por exemplo. Ergue o nariz e diz que é trash. Depois, agarra um saquinho de pipoca, senta na primeira fila e grita a cada vez que o Jason ergue o machado.
Workshop — E uma espécie de curso intensivo. Existem os bons. Mas o termo se presta a muita empulhação. Pois, ao contrário dos cursos, no workshop ninguém tem a obrigação de aprender alguma coisa específica. Basta participar. Muitas vezes botam um sujeito famoso para dar palestras durante dois dias seguidos. Há alunos que chegam a roncar na sala. Depois fazem bonito dizendo que participaram de um workshop com fulano ou beltrano. A palavra é imponente, não é?
Releitura — Ninguém, no meio artístico ou gastronômico, consegue sobreviver sem usar essa palavra. Está em moda. Fala-se em releitura de tudo: de músicas, de receitas, de livros. Em culinária, releitura serve para falar de alguém que achou uma receita antiga e lhe deu um toque pessoal. Críticos culinários e donos de restaurantes badalados adoram falar em cardápios com releitura disso e daquilo. Ora, um cozinheiro não bota seu tempero até na feijoada? Isso é releitura? Então minha avó fazia releitura e não sabia, coitada. O caso fica mais complicado em outras áreas. Fazer uma releitura de uma história não é disfarçar falta de ideia? Claro que existem casos e casos. Mas que releitura serve para disfarçar cópia e plágio, serve. Seria mais honesto dizer “adaptado de..." ou “inspirado em...", como faziam antes.
Daria para escrever um livro inteiro a respeito. Fico arrepiado quando alguém vem com uma conversa abarrotada de termos como esses. Parece que vão me passar a perna. Ou a culpa é minha, e não sou capaz de entender a profundidade da conversa. Nessas horas, fico pensando: será que sou bobo? Ou tem gente esperta demais?
(CARRASCO, Walcyr. In: SILVA, Carmem Lucia da & SILVA, Nilson Joaquim da. (orgs.) Lições de Gramática para quem gosta de Literatura. São Paulo: Panda Books, 2007. p. 77-79.)
I Ching, o livro mais antigo do mundo
Nos últimos 3 mil anos os 64 hexagramas chineses foram guia espiritual, manual de governo e fonte para a ciência moderna. Conheça essa misteriosa história.
Zero, um, zero, zero, um, um. Sem esses dois números em combinações intermináveis, o mundo de hoje seria chatíssimo. Eles formam o código binário, usado por todo computador que existe para transmitir milhões de dados dia a dia, guardar toda uma vida numa caixa postal de e-mail e deixar íntimas pessoas que moram a milhares de quilômetros de distância.
Esse sistema foi cunhado no século 18 pelo matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, mas sua origem, segundo o próprio Leibniz, é muito mais antiga. Está em um livro chinês de adivinhação e consulta espiritual que guardaria a verdade universal; seria uma miniatura do infinito e a chave para o funcionamento do Universo: o I Ching, o Livro das Mutações.
Com pelo menos 3 mil anos de existência, o I Ching se baseia na ideia de mutação contínua, regida pela soma das forças cósmicas do yin ( a sombra) e do yang ( a luz). O livro caminhou junto com a história da China. Ajudou a criar religiões orientais, como o taoísmo, foi a principal fonte de inspiração do pensador chinês Confúcio e serviu como elemento unificador do país durante o século 3 a.C.
(fonte: Botelho, José Francisco.I Ching...Super,São Paulo, n. 235,jan. 2007)
Texto: Meu ideal seria escrever...
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – “ai meu Deus, que história mais engraçada!”. E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria – “mas essa história é mesmo muito engraçada!”.
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!”. E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontâ- nea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina”.
E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história...”.
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
Rubem Braga, In: A traição das elegantes, Editora Sabiá -
Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.