Questões de Concurso
Comentadas sobre sintaxe em português
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Catadores de pelo de cachorro. É a mais nova modalidade de cooperativa de reciclagem, que pretende recolher o material da tosa em pet shops* e transformá-lo em roupas de animais.
O projeto de transformar pelo de poodle em tecido começou em uma escola do Senai em 2008 e ganhou legitimidade após pesquisa na USP demonstrar que o material é similar ao da lã de carneiro e pode passar pelo processo de fiação.
“Um leigo não conseguiria diferenciar um do outro", diz Renato Lobo, que realizou o estudo com pelo de poodle em seu mestrado. Segundo ele, há similaridade entre os dois em relação à maciez, tingibilidade (capacidade de receber corante), alongamento, absorção de líquido e isolamento térmico.
Do ponto de vista técnico, Lobo explica que a única diferença entre o pelo do poodle e a lã do carneiro é o comprimento da fibra - mais curta no primeiro. Mas essa diferença não altera o processo de fiação, porque há um maquinário próprio para fibras mais curtas.
Agora, a proposta é montar uma cooperativa de catadores de pelo seguindo o mesmo modelo das que hoje reciclam latinhas e papelão. Lobo diz que há negociações com três dessas cooperativas para possível parceria.
Hoje, o pelo é descartado no lixo pelos pet shops. A ideia é que, após a coleta, limpeza e fiação, ele vire roupinhas para animais que serão vendidas também nas lojas. “Estamos em contato com ONGs que produzem essas roupas para animais de estimação para apresentar o tecido feito de pelo."
“A procura por roupas de animais é grande, principalmente no inverno. Tenho certeza de que haverá interesse, porque as pessoas adoram uma novidade", diz o veterinário Sergio Soares Júnior.
E roupas para humanos? Segundo Lobo, “Há viabilidade técnica para produzi-las, mas não sei se haveria aceitação. As pessoas usam casacos de couro, mas não sei se aceitariam roupas de pelo de cão. De animal para animal, fica mais fácil."
(Cláudia Collucci, Folha de S.Paulo, 20.07.2014. Adaptado)
* pet shops: lojas especializadas em serviços e artigos relativos a animais de estimação
Tenho certeza de que haverá interesse
I. A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda. Mário Quintana.
II. Amar, porque nada melhor para a saúde que um amor correspondido. Vinícius de Moraes.
III. Cada dia, a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo, e ninguém morreria de fome. Mahatma Gandhi.
IV. Há quem me julgue perdido, porque ando a ouvir estrelas. Só quem ama tem ouvido para ouvi-las e entendê-las. Olavo Bilac.
é CORRETO afirmar que
A lei ............. se referiu já foi revogada.
Os cálculos matemáticos ................ se lembraram eram enormes.
O emprego ................ aspiras é extremamente importante.
O conto de Machado ................. gostou foi premiado.
A peça teatral ................ assistimos foi de uma sutileza política fantástica.
Tirem a TV do quarto
_________que crianças que dispunham de tevê no quarto __________notas significativamente __________às de seus colegas que não tinham tevê no quarto.
(Riad Younes, Carta Capital,20 de julho de 2005. Adaptado)
As lacunas devem ser preenchidas, respectivamente, de acordo com a norma-padrão da língua portuguesa, com:
“Ele tem dezesseis anos, um câncer de boca horroroso, mal anda, mas o médico disse que faz a remoção da mandíbula e uma abertura no estômago para ele se alimentar. Eu queria que ele morresse logo, não tenho dinheiro.”
Tratava-se de um cão idoso, sofrendo e atormentando a vida da minha paciente.
O que aconteceu com a morte, que nem é mais permitida aos animais que sofrem, que dirá a nós humanos?
Ano de 1973, um dos meus pacientes era um velhinho com câncer de fígado que finalmente teve uma parada cardíaca na minha frente.
Iniciei logo os processos de reanimação (massagem cardíaca etc). Debalde. O chefe de clínica, meu hoje amigo Prof. Alvariz, me chamou: “Daudt, aquilo não se chama parada cardíaca. Chama-se MORTE. É necessário saber a diferença”.
Parece que nós, médicos, em particular, e a sociedade, em geral, perdemos a noção dessa preciosa diferença, e estamos infligindo um tormento artificial a nós mesmos e aos infelizes sob nossos cuidados.
Aos médicos, a diferença não é ensinada nas faculdades. Pelo contrário. A morte é vista como uma inimiga a ser combatida a quaisquer “custo$”, saídos dos nossos bolsos.
E o inferno não atinge só os terminais. Ele se estende aos iniciais que não deveriam ter iniciado.
A mãe natureza vem expulsando embriões inviáveis desde sempre, em diversas fases da gestação. O aborto de fetos anencéfalos foi consentido a duras penas, e ainda revolta muitos.
A compulsão de “salvar vidas” atinge prematuros malformados (outrora inviáveis) ao ponto de vegetarem por meses ou anos, aprisionando e desgraçando familiares pobres.
Os médicos deste circo de horrores têm um lema sinistro: “No meu plantão, não!” E se desdobram em manobras heroicas para prolongar a existência daquele ser sem perspectivas, com a crueldade adicional de dar esperança às famílias.
Até há pouco tempo, morria-se em casa, sabendo que se ia morrer, cercado de carinho da família, dizendo suas últimas palavras, num rito de despedida que incluía a morte como parte da vida, e como um momento digno.
Hoje, varremos nossos moribundos para debaixo de uma UTI, que nos “poupa de assistir o horror”.
Pude proporcionar esse momento digno a minha mãe de 95 anos. Ela já estava na maca para ser levada à ambulância quando cheguei. “Podem voltar, que ela quer morrer em casa”. O médico apertou minha mão, solidário e comovido.
Posta em sua cama, minha mãe disse: “Que bom, voltei ao meu cantinho”. E morreu como queria.
(Francisco Daudt. Folha de S.Paulo, 02 de abril de 2014. Adaptado)
... aprisionando e desgraçando familiares pobres, que a eles ficam acorrentados nos institutos, ...
O afã de afrontar conveniências parece condição necessária para que Lars von Trier consiga se expressar
Eduardo Escorel
Usar o prelúdio da abertura de Tristão e Isolda, de Wagner, como trilha musical é prova da audácia de Lars von Trier, roteirista e diretor de Melancolia. Recorrendo a tamanho lugar-comum para dar tom solene e impressão de grandiosidade ao filme, Trier corre o alto risco de ultrapassar o limite que separa ambição legítima de artifício pretensioso.
Trier consegue, porém, escapar pela tangente dessa armadilha que preparou para si mesmo, e evita a gratuidade formal, apesar de, além de recorrer a Wagner, dedicar os dez minutos iniciais de Melancolia a imagens alegóricas de instantes descontextualizados, reproduzidas em câmera lentíssima. Em retrospecto, o sentido dos planos da abertura fica claro, constituindo figura de linguagem conhecida - antecipação estilizada do desfecho da narrativa para criar expectativa pelo que virá.
Depois de dois anos de trabalho, horrorizado com o resultado, Trier declarou estar pronto para rejeitar Melancolia “como um órgão mal transplantado" por ter “chantili em cima de chantili" e ser “um filme de mulher!". Ele quisera “mergulhar de cabeça no abismo do romantismo alemão. Wagner ao quadrado". Isso estava claro para ele, mas ainda assim se perguntava: “Essa não será apenas outra maneira de expressar derrota? Derrota para um dos denominadores comuns mais baixos do cinema? O romantismo é maltratado de tudo quanto é forma no insuportavelmente entediante cinema industrial." Tinha esperança, contudo, que “em meio a todo o creme houvesse uma lasca de osso que pudesse afinal quebrar um dente frágil".
A primeira reação de Trier a Melancolia denota senso crítico incomum e pode tê-lo ajudado a fazer um filme mais a seu gosto - ácido, pessimista e opressor -, evitando um estilo meloso e ornamental. Mesmo frustrado, por não ter sido capaz de incluir um pouco da feiura que tanto aprecia em meio às belíssimas imagens, Trier não deixa de provocar inquietação no espectador. Nem o uso de câmera instável, estilo já banalizado pela linguagem corrente, nem o elenco de estrelas internacionais apagam sua marca autoral, fácil de reconhecer desde O Elemento do Crime, seu primeiro filme, realizado em 1984 - qualquer que seja o enredo, os personagens devem percorrer sua via dolorosa.
Inconformado com a própria maturidade, há algo de patético na resistência de Trier em deixar de ser, aos 55 anos, um bad boy. Nostálgico das transgressões da juventude, parece ter orgulho da coleção de notas zero em comportamento recebidas ao longo da sua premiada carreira. Propenso a ser sempre do contra e a causar sofrimento, foi irresponsável na entrevista coletiva do último Festival de Cannes. Sem medir as palavras, declarou em tom irônico entender e simpatizar com Hitler, que “fez algumas coisas erradas, sim, com certeza. […] Eu sou, é claro, muito a favor dos judeus, não, não muito porque Israel não presta". Arrematou dizendo, depois de um suspiro: “O.k., eu sou um nazista."
Declarado persona non grata pela direção do evento, no qual Melancolia foi exibido na mostra oficial, é possível que Trier tenha recebido a notícia como um prêmio por sua leviandade. O paradoxo é que seu compromisso de afrontar conveniências, traço que imprime a seus consiga se expressar.
Revista Piauí, Edição 59, 2011.
O afã de afrontar conveniências parece condição necessária para que Lars von Trier consiga se expressar
Eduardo Escorel
Usar o prelúdio da abertura de Tristão e Isolda, de Wagner, como trilha musical é prova da audácia de Lars von Trier, roteirista e diretor de Melancolia. Recorrendo a tamanho lugar-comum para dar tom solene e impressão de grandiosidade ao filme, Trier corre o alto risco de ultrapassar o limite que separa ambição legítima de artifício pretensioso.
Trier consegue, porém, escapar pela tangente dessa armadilha que preparou para si mesmo, e evita a gratuidade formal, apesar de, além de recorrer a Wagner, dedicar os dez minutos iniciais de Melancolia a imagens alegóricas de instantes descontextualizados, reproduzidas em câmera lentíssima. Em retrospecto, o sentido dos planos da abertura fica claro, constituindo figura de linguagem conhecida - antecipação estilizada do desfecho da narrativa para criar expectativa pelo que virá.
Depois de dois anos de trabalho, horrorizado com o resultado, Trier declarou estar pronto para rejeitar Melancolia “como um órgão mal transplantado" por ter “chantili em cima de chantili" e ser “um filme de mulher!". Ele quisera “mergulhar de cabeça no abismo do romantismo alemão. Wagner ao quadrado". Isso estava claro para ele, mas ainda assim se perguntava: “Essa não será apenas outra maneira de expressar derrota? Derrota para um dos denominadores comuns mais baixos do cinema? O romantismo é maltratado de tudo quanto é forma no insuportavelmente entediante cinema industrial." Tinha esperança, contudo, que “em meio a todo o creme houvesse uma lasca de osso que pudesse afinal quebrar um dente frágil".
A primeira reação de Trier a Melancolia denota senso crítico incomum e pode tê-lo ajudado a fazer um filme mais a seu gosto - ácido, pessimista e opressor -, evitando um estilo meloso e ornamental. Mesmo frustrado, por não ter sido capaz de incluir um pouco da feiura que tanto aprecia em meio às belíssimas imagens, Trier não deixa de provocar inquietação no espectador. Nem o uso de câmera instável, estilo já banalizado pela linguagem corrente, nem o elenco de estrelas internacionais apagam sua marca autoral, fácil de reconhecer desde O Elemento do Crime, seu primeiro filme, realizado em 1984 - qualquer que seja o enredo, os personagens devem percorrer sua via dolorosa.
Inconformado com a própria maturidade, há algo de patético na resistência de Trier em deixar de ser, aos 55 anos, um bad boy. Nostálgico das transgressões da juventude, parece ter orgulho da coleção de notas zero em comportamento recebidas ao longo da sua premiada carreira. Propenso a ser sempre do contra e a causar sofrimento, foi irresponsável na entrevista coletiva do último Festival de Cannes. Sem medir as palavras, declarou em tom irônico entender e simpatizar com Hitler, que “fez algumas coisas erradas, sim, com certeza. […] Eu sou, é claro, muito a favor dos judeus, não, não muito porque Israel não presta". Arrematou dizendo, depois de um suspiro: “O.k., eu sou um nazista."
Declarado persona non grata pela direção do evento, no qual Melancolia foi exibido na mostra oficial, é possível que Trier tenha recebido a notícia como um prêmio por sua leviandade. O paradoxo é que seu compromisso de afrontar conveniências, traço que imprime a seus consiga se expressar.
Revista Piauí, Edição 59, 2011.
I. Quando ele __________ os quadros, nós iremos à galeria.
II. Se eles se __________, o filho não estaria com tantos problemas na escola.
III. Vou estudar para que eu não __________ de ajuda.
A correção gramatical do texto seria mantida se, em “acesso a informação” (l.2-3), fosse empregado o acento indicativo de crase: acesso à informação.
Nas linhas de 11 a 13, o termo “os organismos de radiodifusão de serviço público na Europa” é o sujeito da oração construída em torno da locução verbal “foram operados” e o termo “como monopólios protegidos por lei” é um adjunto adverbial.
Conheço muitas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos, aliás estão ficando cítricos sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargos. Com fel nos olhos.
[...]
Envelhecer deveria ser como planar. Como quem não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.
Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, e nem da ruga do tempo, e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo lugar – o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos sábios permitida.
Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.
O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma outra faca nova.
Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria uma suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até se evaporar. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se, foi vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.
[...]
Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas assenciais; que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isto é verdade. Parcial porém. Pois não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação, há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada da vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.
Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores. Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: “Penso que podia viver com os animais que são plácidos e bastam-se a si mesmos". Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o sol se queixar no entardecer. Nem a lua chorar quando amanhece.
(Affonso Romano de Sant'anna. Fizemos bem em resistir. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1984.)
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?
Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? - perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer. O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! - como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes, mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que, mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede, mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.
Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu, bem junto de sua cara, dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que, realmente, ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia-se intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
LISPECTOR, Clarice. “O primeiro beijo". In: O primeiro beijo e outros contos - antologia. São Paulo: Ática, 1997 (pp.20-22). Adaptado.
Desta vez não foi preciso esperar junho. Dois acontecimentos de tonalidades quase opostas, no início de ano futebolístico, tiveram o dom de mostrar ao mundo a formação estamental brasileira sob o manto da suposta igualdade civil. Refiro-me à retomada dos irônicos “rolezinhos” em shoppings de São Paulo e ao macabro vídeo das decapitações no Maranhão.
O sentido ideológico das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras paulistanos é difícil de precisar. Como fica claro em entrevista do antropólogo Alexandre Barbosa Pereira (brasil.elpais.com), elas contêm profunda ambiguidade. De um lado, ao contestar a falta de áreas de lazer e a exclusividade de espaços semipúblicos para quem tem dinheiro, trazem demanda igualitária. Por outro, ao expressar fascínio pelo universo da mercadoria, ajudam a reproduzir a desigualdade contestada.
Mas, ao menos numa dimensão, o movimento juvenil em torno dos locais de consumo traz recado claro e insofismável. As meninas e meninos estão dizendo: “Nós existimos e queremos ter o direito pleno a participar desta sociedade, seja ela como for”. Convencidos, por bons motivos, de que a vida social gira em torno da mercadoria, a garotada periférica se organizou para afirmar que não admite mais ser excluída desse círculo.
Embora quase impossível, se abstrairmos o que há de monstruoso na ação dos detentos maranhenses, há também ali um grito de desespero, uma maneira cruel e sanguinária de dizer que não é possível viver naquela situação excluída por completo do cânone civilizado. Celas com 13 presos em espaço onde caberiam apenas quatro. Galinha crua como refeição. Cheiro nauseante de fezes, urina e comida estragada. Foram tais amostras superficiais do inferno penitenciário que a Folha colheu em presídio de São Luís análogo ao do horrendo filme.
A organização dos presidiários em bandos que, na prática, controlam o cotidiano da prisão é a consequência óbvia de tais condições. Sociedade de massas com um dos mais altos índices de detentos do planeta, o Brasil gera, quase que de maneira automática, redes criminosas que, uma vez formadas, funcionam como pequenos Estados dentro do Estado. O problema é que são Estados tirânicos, onde a lei é simplesmente a do mais forte.
Tanto os “rolezinhos” paulistanos quanto as cabeças cortadas de Pedrinhas estão a lembrar a tarefa que o país da Copa do Mundo ainda tem diante de si: incluir, integrar, dar acesso universal aos benefícios que já foi capaz de produzir para uma parte da população. Esvaziar presídios e encher praças vai exigir de nós bem mais do que terminar os estádios a tempo.
SINGER, A. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. A2. 11 jan. 2014. Adaptado.
Desta vez não foi preciso esperar junho. Dois acontecimentos de tonalidades quase opostas, no início de ano futebolístico, tiveram o dom de mostrar ao mundo a formação estamental brasileira sob o manto da suposta igualdade civil. Refiro-me à retomada dos irônicos “rolezinhos” em shoppings de São Paulo e ao macabro vídeo das decapitações no Maranhão.
O sentido ideológico das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras paulistanos é difícil de precisar. Como fica claro em entrevista do antropólogo Alexandre Barbosa Pereira (brasil.elpais.com), elas contêm profunda ambiguidade. De um lado, ao contestar a falta de áreas de lazer e a exclusividade de espaços semipúblicos para quem tem dinheiro, trazem demanda igualitária. Por outro, ao expressar fascínio pelo universo da mercadoria, ajudam a reproduzir a desigualdade contestada.
Mas, ao menos numa dimensão, o movimento juvenil em torno dos locais de consumo traz recado claro e insofismável. As meninas e meninos estão dizendo: “Nós existimos e queremos ter o direito pleno a participar desta sociedade, seja ela como for”. Convencidos, por bons motivos, de que a vida social gira em torno da mercadoria, a garotada periférica se organizou para afirmar que não admite mais ser excluída desse círculo.
Embora quase impossível, se abstrairmos o que há de monstruoso na ação dos detentos maranhenses, há também ali um grito de desespero, uma maneira cruel e sanguinária de dizer que não é possível viver naquela situação excluída por completo do cânone civilizado. Celas com 13 presos em espaço onde caberiam apenas quatro. Galinha crua como refeição. Cheiro nauseante de fezes, urina e comida estragada. Foram tais amostras superficiais do inferno penitenciário que a Folha colheu em presídio de São Luís análogo ao do horrendo filme.
A organização dos presidiários em bandos que, na prática, controlam o cotidiano da prisão é a consequência óbvia de tais condições. Sociedade de massas com um dos mais altos índices de detentos do planeta, o Brasil gera, quase que de maneira automática, redes criminosas que, uma vez formadas, funcionam como pequenos Estados dentro do Estado. O problema é que são Estados tirânicos, onde a lei é simplesmente a do mais forte.
Tanto os “rolezinhos” paulistanos quanto as cabeças cortadas de Pedrinhas estão a lembrar a tarefa que o país da Copa do Mundo ainda tem diante de si: incluir, integrar, dar acesso universal aos benefícios que já foi capaz de produzir para uma parte da população. Esvaziar presídios e encher praças vai exigir de nós bem mais do que terminar os estádios a tempo.
SINGER, A. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. A2. 11 jan. 2014. Adaptado.
I. É difícil precisar os sentidos ideológicos das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras paulistanos.
II. É difícil de precisar os sentidos ideológicos das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras paulistanos.
III. São difíceis de precisar os sentidos ideológicos das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras paulistanos.
É correto o que está contido em
Desta vez não foi preciso esperar junho. Dois acontecimentos de tonalidades quase opostas, no início de ano futebolístico, tiveram o dom de mostrar ao mundo a formação estamental brasileira sob o manto da suposta igualdade civil. Refiro-me à retomada dos irônicos “rolezinhos” em shoppings de São Paulo e ao macabro vídeo das decapitações no Maranhão.
O sentido ideológico das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras paulistanos é difícil de precisar. Como fica claro em entrevista do antropólogo Alexandre Barbosa Pereira (brasil.elpais.com), elas contêm profunda ambiguidade. De um lado, ao contestar a falta de áreas de lazer e a exclusividade de espaços semipúblicos para quem tem dinheiro, trazem demanda igualitária. Por outro, ao expressar fascínio pelo universo da mercadoria, ajudam a reproduzir a desigualdade contestada.
Mas, ao menos numa dimensão, o movimento juvenil em torno dos locais de consumo traz recado claro e insofismável. As meninas e meninos estão dizendo: “Nós existimos e queremos ter o direito pleno a participar desta sociedade, seja ela como for”. Convencidos, por bons motivos, de que a vida social gira em torno da mercadoria, a garotada periférica se organizou para afirmar que não admite mais ser excluída desse círculo.
Embora quase impossível, se abstrairmos o que há de monstruoso na ação dos detentos maranhenses, há também ali um grito de desespero, uma maneira cruel e sanguinária de dizer que não é possível viver naquela situação excluída por completo do cânone civilizado. Celas com 13 presos em espaço onde caberiam apenas quatro. Galinha crua como refeição. Cheiro nauseante de fezes, urina e comida estragada. Foram tais amostras superficiais do inferno penitenciário que a Folha colheu em presídio de São Luís análogo ao do horrendo filme.
A organização dos presidiários em bandos que, na prática, controlam o cotidiano da prisão é a consequência óbvia de tais condições. Sociedade de massas com um dos mais altos índices de detentos do planeta, o Brasil gera, quase que de maneira automática, redes criminosas que, uma vez formadas, funcionam como pequenos Estados dentro do Estado. O problema é que são Estados tirânicos, onde a lei é simplesmente a do mais forte.
Tanto os “rolezinhos” paulistanos quanto as cabeças cortadas de Pedrinhas estão a lembrar a tarefa que o país da Copa do Mundo ainda tem diante de si: incluir, integrar, dar acesso universal aos benefícios que já foi capaz de produzir para uma parte da população. Esvaziar presídios e encher praças vai exigir de nós bem mais do que terminar os estádios a tempo.
SINGER, A. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. A2. 11 jan. 2014. Adaptado.
I. Os verbos “trazem” e “ajudam” estão no plural por fazerem referência ao termo “jovens de periferia”.
II. A expressão “para quem tem dinheiro” caracteriza o termo “espaços”.
III. O verbo “contêm” apresenta acento circunflexo por estar no plural. Se estivesse no singular, a grafia correta seria “contém”. Já o verbo “tem” não apresenta acento por estar no singular. Se estivesse no plural, grafar-se-ia “têm”.
É correto o que se afirma em
Inicialmente, cabe dizer que a aplicação e a origem dos recursos públicos são sempre uma decisão política. Ao governo cabe dizer onde os recursos serão investidos, e isso também significa dizer onde não serão aplicados. Cabe igualmente ao governo dizer de onde e de quem os recursos serão retirados, e de quem não serão cobrados, ou seja, quem vai e quem não vai pagar a conta. E governo aqui deve ser lido em sua acepção mais ampla, envolvendo todo seu conjunto de instituições.
Trata-se, enfim, de uma opção política.
Uma alternativa para aumentar os recursos públicos disponíveis é fechar seus diversos ralos. No lado dos gastos e despesas, é necessário melhorar o controle e a gestão da coisa pública para evitar desvios com corrupção, além de melhorar a qualidade da alocação dos recursos. Já no lado dos ingressos, é urgente combater os buracos negros no campo tributário, que fazem que muitos recursos públicos deixem de ingressar nos cofres estatais.
HICKMAN, C. M. Le Monde Diplomatique Brasil, 02 set. 2013. Os ralos do dinheiro público no campo tributário. http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1484. Texto com adaptações.
I. A pontuação está correta.
II. Há um problema de regência verbal.
Está correto o que se afirma em