A importância do ato de ler
Paulo Freire
1º Rara tem sido a vez, ao longo de tantos
anos de prática pedagógica, por isso política, em
que me tenho permitido a tarefa de abrir, de
inaugurar ou de encerrar encontros ou
congressos.
2º Aceitei fazê-lo agora, da maneira, porém,
menos formal possível. Aceitei vir aqui para falar
um pouco da importância do ato de ler.
3º Me parece indispensável, ao procurar falar
de tal importância, dizer algo do momento mesmo
em que me preparava para aqui estar hoje; dizer
algo do processo em que me inseri enquanto ia
escrevendo este texto que agora leio, processo
que envolvia uma compreensão crítica do ato de
ler, que não se esgota na descodificação pura da
palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que
se antecipa e se alonga na inteligência do mundo.
A leitura do mundo precede a leitura da palavra,
daí que a posterior leitura desta não possa
prescindir da continuidade da leitura daquele.
Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser
alcançada por sua leitura crítica implica a
percepção das relações entre o texto e o
contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância
do ato de ler, em que senti levado – e até
gostosamente – a “reler” momentos fundamentais
de minha prática, guardados na memória, desde
as experiências mais remotas de minha infância,
de minha adolescência, de minha mocidade, em
que a compreensão crítica da importância do ato
de ler se veio _____ mim constituindo. Ao ir
escrevendo este texto, ia “tomando distância” dos
diferentes momentos em que o ato de ler se veio
dando na minha experiência existencial. Primeiro,
a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que
me movia; depois, a leitura da palavra que nem
sempre, ao longo de minha escolarização, foi a
leitura da “palavra mundo”.
4º A retomada da infância distante, buscando
_____ compreensão do meu ato de “ler” o mundo
particular em que me ouvia – e até onde não sou
traído pela memória –, me é absolutamente
significativa. Neste esforço a que me vou
entregando, re-crio, re-vivo, no texto que escrevo,
a experiência vivida no momento em que ainda
não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana
em que nasci, no Recife, rodeada de árvores,
algumas delas como se fossem gente, tal a
intimidade entre nós – à sua sombra brincava e
em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me
experimentava _____ riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. A
velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão,
seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe –,
o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi
meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei,
me pus de pé, Andrei, falei. Na verdade, aquele
mundo especial se dava a mim como o mundo de
minha atividade perceptiva, por isso mesmo como
o mundo de minhas primeiras leituras. Os “textos”,
as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em
cuja percepção me experimentava e, quanto mais
o fazia, mais aumentava a capacidade de
perceber – se encarnavam numa série de coisas,
de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia
apreendendo _____ meu trato com eles, nas
minhas relações com meus irmãos mais velhos e
com meus pais.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 12. ed. São Paulo: Cortez,
1986. p. 11-3.