A liberdade e o consumo
No plano intelectual, o tema da liberdade ocupa as melhores
cabeças, desde Platão e Sócrates, passando por muitos outros.
Como conciliar a liberdade com a inevitável ação restritiva do
Estado? Como as liberdades essenciais se transformam em
direitos do cidadão? Essas questões puseram em choque os
melhores neurônios da filosofia, mas não foram as únicas a
galvanizar controvérsias.
Mas vivemos hoje em uma sociedade em que a maioria já
não sofre agressões a essas liberdades tão vitais, cuja conquista
ou reconquista desencadeou descomunais energias físicas e
intelectuais. Nosso apetite pela liberdade se aburguesou. Foi
atraído (corrompido?) pelas tentações da sociedade de consumo.
O que é percebido como liberdade para um pacato cidadão
contemporâneo que vota, fala o que quer, vive sob o manto da lei
(ainda que capenga) e tem direito de mover-se livremente?
O primeiro templo da liberdade burguesa é o supermercado.
Em que pesem as angustiantes restrições do contracheque, são
as prateleiras abundantemente supridas que satisfazem a
liberdade do consumo (não faz muitas décadas, nas prateleiras
dos nossos armazéns ora faltava manteiga, ora leite, ora feijão).
Não houve ideal comunista que resistisse às tentações do
supermercado.
A segunda liberdade moderna é o transporte próprio. BMW
ou bicicleta, o que conta é a sensação de poder sentar-se ao
veículo e resolver em que direção partir. Podemos até não ir a
lugar algum, mas é gostoso saber que há um veículo parado à
porta, concedendo permanentemente a liberdade de ir, seja
aonde for..
A terceira liberdade é a televisão. É a janela para o mundo.
É a liberdade de escolher os canais (restritos em países
totalitários), de ver um programa imbecil ou um jogo, ou estar tão
perto das notícias quanto um presidente da República. É estar
próximo de reis, heróis, criminosos, superatletas ou cafajestes
metamorfoseados em apresentadores de TV.
Uma ''liberdade'' recente é o telefone celular. É o gostinho
todo especial de ser capaz de falar com qualquer pessoa, em
qualquer momento, onde quer que se esteja. Importante? Para
algumas pessoas é uma revolução no cotidiano e na profissão.
Para outras, é apenas o prazer de saber que a distância não mais
cerceia a comunicação, por boba que seja.
Há ainda uma última liberdade, mais nova, ainda elitizada: a
internet e o correio eletrônico. É um correio sem as peripécias e
demoras do carteiro, instantâneo, e que está a nosso dispor, onde
quer que estejamos, onde se compra e vende, consomem-se
filosofia e pornografia, arte e empulhação.
Causa certo desconforto intelectual ver substituídas por
objetos de consumo as discussões filosóficas sobre liberdade e o
heroísmo dos atos que levaram à sua preservação em múltiplos
domínios da existência humana. Mas assim é a nossa natureza,
só nos preocupamos com o que não temos ou com o que está
ameaçado. Se há um consolo nisso, ele está no saber que a
preeminência de nossas liberdades consumistas marca a vitória
de havermos conquistado as outras liberdades mais vitais.
Cláudio de Moura Castro - Veja 1712