Texto para responder à questão.
Sob o feitiço dos livros
Nietzsche estava certo: “De manhã cedo, quando o dia
nasce, quando tudo está nascendo — ler um livro é simplesmente algo depravado”. É o que sinto ao andar pelas manhãs
pelos maravilhosos caminhos da fazenda Santa Elisa, do
Instituto Agronômico de Campinas. Procuro esquecer-me de
tudo que li nos livros. É preciso que a cabeça esteja vazia de
pensamentos para que os olhos possam ver. Aprendi isso lendo
Alberto Caeiro, especialista inigualável na difícil arte de ver.
Dizia ele que “pensar é estar doente dos olhos”.
Mas meus esforços são frustrados. As coisas que vejo
são como o beijo do príncipe: elas vão acordando os poemas
que aprendi de cor e que agora estão adormecidos na minha
memória. Assim, ao não pensar da visão, une-se o não-
-pensar da poesia. E penso que o meu mundo seria muito
pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei. Pois,
se não sabem, somente as coisas amadas são guardadas na
memória poética, lugar da beleza.
“Aquilo que a memória amou fica eterno”, tal como o
disse a Adélia Prado, amiga querida. Os livros que amo não
me deixam. Caminham comigo. Há os livros que moram na
cabeça e vão se desgastando com o tempo. Esses, eu deixo
em casa. Mas há os livros que moram no corpo. Esses são
eternamente jovens. Como no amor, uma vez não chega. De
novo, de novo, de novo...
Um amigo me telefonou. Tinha uma casa em Cabo Frio.
Convidou-me. Gostei. Mas meu sorriso entortou quando disse:
“Vão também cinco adolescentes...”. Adolescentes podem ser
uma alegria. Mas podem ser também uma perturbação para o
espírito. Assim, resolvi tomar minhas providências. Comprei
uma arma de amansar adolescentes. Um livro. Uma versão
condensada da “Odisseia”, de Homero, as fantásticas viagens
de Ulisses de volta à casa, por mares traiçoeiros...
Primeiro dia: praia; almoço; sono. Lá pelas cinco, os
dorminhocos acordaram, sem ter o que fazer. E antes que
tivessem ideias próprias eu tomei a iniciativa. Com voz
autoritária, dirigi-me a eles, ainda sob o efeito do torpor: “Ei,
vocês... Venham cá na sala. Quero lhes mostrar uma coisa”.
Não consultei as bases. Teria sido terrível. Uma decisão
democrática das bases optaria por ligar a televisão. Claro.
Como poderiam decidir por uma coisa que ignoravam? Peguei
o livro e comecei a leitura. Ao espanto inicial seguiu-se silêncio e atenção. Vi, pelos seus olhos, que já estavam sob o
domínio do encantamento. Daí para frente foi uma coisa só.
Não me deixavam. Por onde quer que eu fosse, lá vinham
eles com a “Odisseia” na mão, pedindo que eu lesse mais.
Nem na praia me deram descanso.
Essa experiência me fez pensar que deve haver algo
errado na afirmação que sempre se repete de que os adolescentes não gostam da leitura. Sei que, como regra, não gostam
de ler. O que não é a mesma coisa que não gostar da leitura.
Lembro-me da escola primária que frequentei. Havia uma aula
de leitura. Era a aula que mais amávamos. A professora lia para
que nós ouvíssemos. Leu todo o Monteiro Lobato. E leu aqueles
livros que se liam naqueles tempos: “Heidi”, “Poliana”, “A Ilha
do Tesouro”.
Quando a aula terminava, era a tristeza. Mas o bom
mesmo é que não havia provas ou avaliações. Era prazer puro.
E estava certo. Porque esse é o objetivo da literatura: prazer. O
que os exames vestibulares tentam fazer é transformar a
literatura em informações que podem ser armazenadas na
cabeça. Mas o lugar da literatura não é a cabeça: é o coração. A
literatura é feita com as palavras que desejam morar no corpo.
Somente assim ela provoca as transformações alquímicas que
deseja realizar. Se não concordam, que leiam João Guimarães
Rosa, que dizia que literatura é feitiçaria que se faz com o
sangue do coração humano.
(ALVES, Rubem. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
folha/sinapse/ult1063u727.shtml.)