1. Os paroquianos estranharam que, apesar de tão mogo, o vigário novo fosse a tal ponto reservado, só falando o indispensável,
sempre com a batina lambuzada de terra ou de tinta, às voltas com os reparos materiais da igreja. Com o tempo, acreditou-se, o sacerdote
se faria amigo pelo menos das pessoas mais importantes do lugar, o prefeito, o presidente da Câmara, os representantes da Justiça, o
médico, dois ou trés fazendeiros, o farmacêutico. Na porta do estabelecimento deste último é que se discutia a personalidade do vigário,
formando-se um grupo contra e outro a favor.
2. - Parece que ele até faz pouco-caso da gente.
3. - Nunca vi um sujeito de cara tão amarrada.
4. Os simpatizantes pegavam pelo aspecto mais evidente do padre.
5. - Mas que homem danado de trabalhador!
6. E o padre, sem dar mostras de perceber o pasmo da cidade, sempre com suas ferramentas, ativo e suarento. Uma notícia,
entretanto, deu aos munícipes a impressão de que iria começar o degelo, isto é, o vigário passaria a ter um contato mais direto e caloroso
com o povo e os interesses locais. Ele procurara o prefeito e os vereadores para pleitear um cemitério novo, o velho, nos fundos da casa
paroquial, estava mesmo impraticável. Foi um alívio. Enfim, o padre tomara uma atitude perfeitamente normal, uma atitude que o
incorporava à comunidade.
7. - Eu não dizia - exclamava o farmacêutico -, eu apostava que o homem quer o trabalhar por nós. Francamente, este cemitério é
indigno do progresso da cidade. A gente aqui nem pode morrer por falta de lugar.
8. Com o entusiasmo, a Câmara votou uma verba especial para a aquisição de um terreno e benfeitorias adequadas. E não
demorou que o novo campo-santo, depois de abençoado, fosse inaugurado com um discurso, no qual o prefeito apelava para os céus:
aprouvesse a Deus que jamais um corpo inânime viesse a transpor os umbrais daquela necrópole. Seis dias depois, entretanto, um corpo
inânime transpunha os umbrais daquela necrópole: Deus, de repente, chamara o farmacêutico.
9. O vigário, realizada a sua única aspiração, passou a desaparecer por longas horas do dia; fora dos ofícios religiosos, raramente
era visto, inquietando ainda mais os habitantes. Uma tarde, a bomba estourou: a viúva do coronel Inácio, inda levar flores à campa do
falecido, no velho cemitério, descobrira a verdade macabra, a paisagem inacreditável: o antigo cemitério da cidade transformara-se
escandalosamente numa horta. O estupor e a revolta não tiveram limites. Depois de muitos debates, uma comissão foi encarregada de
levar ao vigário um pedido enérgico: aquilo não podia continuar, ali repousavam os entes queridos de todas as famílias da cidade: e estas
esperavam que o senhor vigário arrancasse sem mais demora todos os pés de hortaliças. O vigário respondeu que não via matéria de
escândalo, citou um versículo do Antigo Testamento e despediu a todos com impaciência.
10. Foi aí que os homens válidos, pedindo a compreensão de Deus, resolveram invadir o cemitério, munidos de enxadas, facas e
varapaus, para acabar com a horta que já não deixava ninguém dormir em paz, nem os mortos, nem os vivos. Pois, quando se
aproximaram do cemitério, foram barrados pelo cano da espingarda do vigário: ali ninguém entrava vive. Os homens voltaram
desapontados e tornaram a discutir o impasse. Alguém então teve a ideia de se levar uma denúncia ao bispo da diocese. Uma semana
depois, o padre embarcava numa jardineira com a mala, a espingarda e a cara amarrada. A população toda, depois de decidir que as
hortaliças seriam destruídas, e não doadas aos pobres, entrou com o máximo respeito no velho cemitério e devastou a bela plantação.
(Adaptado de: CAMPOS, Paulo Mendes. Balé do pato e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2012)