O cajueiro
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas
mais antigas recordações de minha infância, belo, imenso,
no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta
dizendo que ele caiu. Eu me lembro de outro cajueiro que
era menor e morreu há muito mais tempo.
Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da
pequena touceira de espadas-de-são-jorge e da alta
saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a
meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas
pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de
tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores
humildes, beijos, violetas. Tudo sumira, mas o grande pé de
fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro lá no alto eram
como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino
que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica
de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo
cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e
os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre
carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Caribé subisse o
morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um
amigo de outras terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa
tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira
abaixo, e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar
o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida,
pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos
que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em setembro. Estava carregado de flores.
(Rubem Braga. Cem crônicas escolhidas. Rio de Janeiro. José Olímpio.
1956. Pág. 320-22. Com adaptações.)