AS FORMIGAS
Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era
quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado
de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um
deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
– É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra
escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia
um preço melhor a duas pobres estudantes com
liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos
avisara por telefone que podíamos fazer refeições
ligeiras com a condição de não provocar incêndio.
Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
– Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha
prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do
que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de
seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas
por uma crosta de esmalte vermelho-escuro,
descascado nas pontas encardidas. Acendeu um
charutinho.
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando
a fumaça na minha direção.
– Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar
pensando em outra coisa quando soltou uma baforada
tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era
escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No
sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas
que pareciam ter sido feitas com os restos de um
antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. [...]
(TELLES, Lygia Fagundes. As formigas. Disponível em:
contobrasileiro.com.br)