TEXTO 04
Do direito de não informar
RIO DE JANEIRO – Evidente, é o progresso. Os
meios de comunicação, com os recursos
tecnológicos de hoje, colocam os personagens da
comédia humana em exposição quase total.
Acompanhamos o cotidiano, invadimos a
privacidade alheia com as câmeras, os vídeos, as
escutas telefônicas, as tomografias
computadorizadas dos doentes, o estado terminal
dos moribundos.
Desde o pé enfaixado do presidente, as tíbias
esquálidas do delegado suspeito de mutretas
graves, o aparelho urinário do governador que
estava morrendo de câncer generalizado, tudo fica
escancarado na TV, nas revistas e nos jornais em
nome do sagrado direito que tem o povo de estar
informado.
Pessoalmente, não considero sagrado esse direito,
duvido até mesmo de que tenhamos o direito de
saber tudo de todos. Trabalhei durante anos com
um repórter - dos melhores que conheci - que foi
entrevistar um deputado recém-eleito, na faixa da
meia-idade, e quis saber se ele tomava Viagra.
Certa vez, o fotógrafo de uma revista foi à minha
casa e queria fotografar os meus sapatos. O
pauteiro da matéria garantira que eu possuía uma
esplêndida coleção de sapatos italianos, eu seria
uma espécie de Imelda Marcos, a mulher do ditador
filipino, que tinha mais de mil pares de sapatos.
Quem estaria interessado nos meus tênis
esmolambados, nas vias urinárias do governador já
morto, em quem toma ou não toma viagra? Vi, na
semana passada, a foto do pé enfaixado de Lula.
Recebi uma informação que não me interessava.
Como vingança, darei uma informação que não
deve interessar a ninguém: estarei fora do país por
uma semana. Pessoas mal informadas, em Paris e
em Lyon, querem saber como vai a literatura
brasileira. Talvez aproveite a oportunidade e fale
sobre a coleção de sapatos italianos que não
tenho.
(CONY, Carlos Heitor. In: Folha de S. Paulo, 23 de
novembro de 2003, p. 2.)
TEXTO 05
Uma maior depuração entre o que se pode
entender por literal, por figurado e por antífrase, na
perspectiva constitutiva do discurso irônico, parece
revelar que a ironia é produzida, como estratégia
significante, no nível do discurso, devendo ser
descrita e analisada da perspectiva da enunciação
e, mais diretamente, do edifício retórico instaurado
por uma enunciação. Isso significa que o discurso
irônico joga essencialmente com a ambiguidade,
convidando o receptor a, no mínimo, uma dupla
decodificação, isto é, linguística e discursiva.
(BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica.
Campinas: UNICAMP. 1996, p.96.)