TEXTO 02
A metamorfose
Luis Fernando Verissimo
Uma barata acordou um dia e viu que tinha se
transformado num ser humano. Começou a mexer
suas patas e viu que só tinha quatro, que eram
grandes e pesadas e de articulação difícil. Não
tinha mais antenas. Quis emitir um som de surpresa
e sem querer deu um grunhido. As outras baratas
fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis
segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu
segundo pensamento foi: “Que horror… Preciso
acabar com essas baratas…”
Pensar, para a ex-barata, era uma novidade.
Antigamente ela seguia seu instinto. Agora
precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto
com a cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu
pela casa e encontrou um armário num quarto, e
nele, roupa de baixo e um vestido. Olhou-se no
espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata.
Maquiou-se. Todas as baratas são iguais, mas as
mulheres precisam realçar sua personalidade.
Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu
que só um nome não bastava. A que classe
pertencia?… Tinha educação?…. Referências?…
Conseguiu a muito custo um emprego como
faxineira. Sua experiência de barata lhe dava
acesso a sujeiras mal suspeitadas. Era uma boa
faxineira.
Difícil era ser gente… Precisava comprar comida e
o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam
num roçar de antenas, mas os seres humanos não.
Conhecem-se, namoram, brigam, fazem as pazes,
resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai
dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos,
roupa de cama, mesa e banho. Vandirene casou-se, teve filhos. Lutou muito, coitada. Filas no
Instituto Nacional de Previdência Social. Pouco
leite. O marido desempregado… Finalmente
acertou na loteria. Quase quatro milhões! Entre as
baratas ter ou não ter quatro milhões não faz
diferença. Mas Vandirene mudou. Empregou o
dinheiro. Mudou de bairro. Comprou casa. Passou
a vestir bem, a comer bem, a cuidar onde põe o
pronome. Subiu de classe. Contratou babás e
entrou na Pontifícia Universidade Católica.
Vandirene acordou um dia e viu que tinha se
transformado em barata. Seu penúltimo
pensamento humano foi: “Meu Deus!… A casa foi
dedetizada há dois dias!…”. Seu último
pensamento humano foi para seu dinheiro
rendendo na financeira e que o safado do marido,
seu herdeiro legal, o usaria. Depois desceu pelo pé
da cama e correu para trás de um móvel. Não
pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu cinco minutos depois, mas foram os cinco minutos
mais felizes de sua vida.
Kafka não significa nada para as baratas…
(VERÍSSIMO, Luís Fernando. A metamorfose. in Ed
Morte e outras histórias. Porto Alegre. L&PM
Editores, 1979.)