TEXTO I
O que é ser “assim”?
Já faz algum tempo, eu ganhei o livro A oração
de Jabez. Nele, o autor Bruce Wilkinson discorre sobre
o sentido de cada trecho da prece, considerada, por muitos, milagrosa. Então, movida mais pela curiosidade do
que pela fé, fiz questão de conhecê-la e, por ter apenas
cinco frases, aqui a transcrevo: Oh! Que me abençoes e
me alargues as fronteiras, que seja comigo a Tua mão e
me preserves do mal, de modo que não me sobrevenha
aflição!
Achei a oração bonita, e levei adiante a minha
leitura, até que me deparei com a seguinte frase: Não é
sempre que você pode se dar ao luxo de ser o segundo colocado. A menção feita ao segundo lugar, ainda mais o destacando como posição grandiosa, atraiu minha atenção.
Sou a segunda filha do segundo casamento do meu pai.
[...] Portanto, na minha posição de herdeira nata, herdei
objetos, roupas, livros de escola. Quando fui matriculada no curso primário, tive medo de ir à escola, temerosa
de, por ser segunda, não dar continuidade ao brilhantismo familiar que me precedia. Criança sofre, viu? Eu era
uma aluna comum,[...] a professora aproveitou a minha
desatenção para perguntar quanto seria 9x9, mas, antes,
exigiu que eu colocasse as duas mãos abertas sobre a carteira para que não contasse nos dedos. Evidente, não fui
capaz de responder. Com visível impaciência, ela me fez
a seguinte pergunta: Por que você é “assim”? Mais uma
vez, não soube responder, entretanto, juro, eu voltei para
casa muito intrigada e me perguntando: o que é ser “assim”?! A vida continuou... com essa pergunta me alfinetando de vez em quando.
Passados quase quarenta anos, apresentaram-me
o poeta Manoel de Barros. A aproximação foi imediata.
Só pelos títulos dos seus livros, é possível entender. E foi
quando eu li o seu poema O Provedor, que descobri o que
era ser “assim”. O poema diz: Andar à toa é coisa de ave.
Meu avô andava à toa. Não prestava pra quase nunca.
Mas sabia o nome dos ventos. E todos os assobios para
chamar passarinhos... [...]
Hoje, sem titubear, sem constrangimento de ser a
segunda e já recuperada da minha ignorância tímida por
não saber explicar o que é ser “assim”, eu simplesmente responderia àquela professora: Eu não sabia, naquele
tempo, o quanto é bonito ser “assim”!
(BORGES,HELOÍSA HELENA DE CAMPOS. As fomes
do mundo & outras crônicas. Ed.Kelps, Goiânia,
2018. pp.111-114. Texto adaptado).