O fim do mundo
A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo,
o mundo para mim não tinha nenhum sentido,
ainda; de modo que não me interessava nem o
seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém,
vagamente, de umas mulheres nervosas que
choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um
cometa que andava pelo céu, responsável pelo
acontecimento que elas tanto temiam. Nada
disso se entendia comigo: o mundo era delas, o
cometa era para elas: nós, crianças, existíamos
apenas para brincar com as flores da goiabeira
e as cores do tapete. Mas, uma noite,
levantaram-me da cama, enrolada num lençol,
e, estremunhada, levaram-me à janela para me
apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo
que até então não me interessava nada, que nem
vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me,
de repente, maravilhoso. Era um pavão branco,
pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma
noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao
encontro da sua festa? Gostei muito do cometa.
Devia sempre haver um cometa no céu, como
há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas
andavam tão apavoradas? A mim não me
causava medo nenhum. Ora, o cometa
desapareceu, aqueles que choravam enxugaram
os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu
tenha ficado um pouco triste – mas que
importância tem a tristeza das crianças? Passouse muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as
quais o suposto sentido do mundo. Não duvido
de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo
muitos, inúmeros, pois em redor de mim as
pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada
coisa que bem se vê haver um sentido do mundo
peculiar a cada um. Dizem que o mundo
termina em fevereiro próximo. Ninguém fala
em cometa, e é pena, porque eu gostaria de
tornar a ver um cometa, para verificar se a
lembrança que conservo dessa imagem do céu
é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus
olhos naquela noite já muito antiga. O mundo
vai acabar, e certamente saberemos qual era o
seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns
trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que
fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos
e tão leais. Por que pensamos tanto em nós
mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos –
além dos particulares. Por que mentimos tanto,
com palavras tão judiciosas. Tudo isso
saberemos e muito mais do que cabe enumerar
numa crônica. Se o fim do mundo for mesmo
em fevereiro, convém pensarmos desde já se
utilizamos este dom de viver da maneira mais
digna. Em muitos pontos da terra há pessoas,
neste momento, pedindo a Deus – dono de
todos os mundos – que trate com benignidade
as criaturas que se preparam para encerrar a sua
carreira mortal. Há mesmo alguns místicos –
segundo leio – que, na Índia, lançam flores ao
fogo, num rito de adoração. Enquanto isso, os
planetas assumem os lugares que lhes
competem, na ordem do universo, neste
universo de enigmas a que estamos ligados e no
qual por vezes nos arrogamos posições que não
temos – insignificantes que somos, na tremenda
grandiosidade total. Ainda há uns dias a
reflexão e o arrependimento: por que não os
utilizaremos? Se o fim do mundo não for em
fevereiro, todos teremos fim, em qualquer
mês…
Cecília Meireles