Primeira paixão
O amor, nas crianças, é um estado de alma absorvente, pastoso e imenso que, embora não seja
uma coisa muito definida, leva o menino apaixonado a uma série de sonhos, de medos, de renúncias,
de tramas secretas e, principalmente, de ânsia heroica – quando a gente tem vontade que a amada
comece a morrer afogada para a gente salvar.
Eu me lembro de que o meu primeiro e grande amor aconteceu aos seis anos de idade.
Apaixonei-me perdidamente por uma moça de 30, por quem me cortaria, me queimaria, me desonraria
e morreria, se preciso fosse. Só eu e eu sabíamos daquele caso de bem-querer, embora todo mundo
houvesse descoberto nos meus olhos e na minha carinha de crime secreto. Ela era linda – achava eu
que a amava – e tudo era perfeito. E só muitos anos mais tarde fui ver que aquilo que os outros diziam
era verdade: ela era horrível.
Hoje ela vive ainda, vejo-a de vez em quando, velhinha gasta em tudo, muito mais feia do que
quando era horrível; mas sinto pela sua fealdade uma especial ternura, uma imensa gratidão. Foi ela –
e isto é importante – a chave que abriu meu coração para o amor e, pelos caminhos do amor, andei o
mais que pude, sem queixas e sem arrependimentos.
Hoje, minha filha entrou na sala onde escrevo e veio andando de olhos baixos. Quis pedir que
me deixasse em paz, mas seu jeito era tão solene e, ao mesmo tempo, tão humilde, tão vitorioso e tão
vencido, que senti solidariedade. Abracei-a antes que começasse a falar. Abraçamo-nos. E ela começou
a dizer: “Meu pai, estou noiva”. Perguntei de quem e ela disse o nome de um dos meninos da
vizinhança.
Olhei para sua carinha de oito anos, deu vontade de rir, mas seria estragar a festa, quebrar a
alegria de um dia de noivado. E falei, com o jeito mais sério que pude: “Meus parabéns, minha filha,
espero que vocês sejam muito felizes... E, em 1965, quero entrar com você, de braços dados, na
Candelária ou no Outeiro da Glória”. Olhei bem para ela e, em seus olhos da cor de abacate maduro,
havia acordes da “Marcha nupcial”, do alemão Felix Mendelssohn.
MARIA, A. Primeira paixão. In: TAUIL, G. (Org.) Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, 2021, p. 277-
278. (Adaptado).