Texto CB1A7
Quando está triste, coxeia. É assim desde o começo,
quando deu os primeiros passos agarrado ao armário branco da
casa de seus pais. Começou a andar direito e assim prosseguiu o
caminho habitual dos homens, mas sempre que alguma coisa
correu menos bem (uma bolacha que lhe foi recusada, uma sopa
que o forçaram a sorver, um grito que ouviu a meio do dia, um
beijo que lhe foi deixado em suspensão) ele perdeu a força numa
das pernas. Hoje, varado de saudade da ex-mulher, caminha
sozinho e coxo pelas ruas escuras da aldeia. Não se preocupa
nem um pouco com a chuva que o encharca da cabeça aos pés,
nem com o frio. Leva sim a mão à perna direita como quem tenta
trazê-la à razão. E pela primeira vez em quarenta anos repara: a
dor não vem do joelho nem do pé, nem sequer vem do osso
epicôndilo medial. É o nervo ciático que lhe dói. Atravessa-lhe a
perna inteira mas insiste mesmo é na coxa. A mesma sob a qual
todos aqueles que lhe fizeram promessas colocaram a mão, mas
logo em velocidade a retiraram. Continua então o seu caminho
pela aldeia, agarrado aos muros brancos, sem grande epifania, só
mais dorido que o habitual. Coxeia, porque quando está triste ele
coxeia.
Matilde Campilho. In: Flecha. São Paulo: Editora 34, 2022.