Texto CB1A1-I
Os pais pediram que o menino fosse dormir cedo para que
pudesse acordar à hora da passagem do ano. A julgar pela
insistência da recomendação, o ano não passaria se ele não se
deitasse. O que seria, francamente, um problemão — e para o
mundo todo. Se o ano não virasse, tudo o que estava para
acontecer a partir da meia-noite bruscamente ficaria retido nas
malas, nos pacotes, na escuridão. Por respeito à humanidade, o
garoto acatou. Quer dizer, mais ou menos — ficaria na cama de
olhos fechados, igual quando brincava de morto, mas dormir
mesmo não dormiria. Só estando acordado seria possível
devassar de vez o mistério da passagem do ano.
Os adultos mentem muito, sabia. Até mesmo sua mãe, que
lhe pede não mentir nunca, inventava histórias quando ele
perguntava “como era a cara do ano velho e do ano novo”.
Sempre lhe respondiam, com sorrisos enigmáticos que não
esclarecem nada, que tudo dependia da sua maneira de olhar.
Mas olhar o quê? O ano velho indo embora tal qual um balão,
“subindo, perdendo gás, perdendo gás, até acabar muito chocho”?
Ou a chegada do novo, que descia de paraquedas na praça
General Osório, trazendo uma mochila munida de “talco, escova
de dentes e pombas”, para soltar em sinal de paz e alegria? Pouca
coisa fazia sentido naquela cabeça de menino.
Confinado em seu quarto, correu para a janela depois do
beijo materno de boa noite e ali ficou, vigia do réveillon. Era
preciso guardar o céu, pois com certeza “o ano passa no ar”. Mas
o que faria, então, tanta gente na rua, tanto carro buzinando, sem
ninguém olhando para cima? Já estavam, decerto, acostumados.
“É ruim, ficar acostumado: não se vê mais nada, as coisas vão se
apagando”, concluiu a criança da crônica de Drummond.
Ninguém ia perceber a passagem do ano.
Desiludido, o menino pegou no sono e acordou no chão,
apavorado com o estrondo da virada. Foi correndo para a sala,
onde os adultos, falando um pouco arrastado, tinham perdido o
jeito comum, o jeito diurno. “Ele passou?”, quis saber.
Carinhosa, a mãe levou-o de volta para o quarto, encostou o rosto
em seu rosto e rogou-lhe que dormisse outra vez. O ano passara
sem que ele o visse. Bem que sua mãe tinha alertado: só dependia
da maneira de olhar... e ele não acertara com a maneira.
Guilherme Tauil. Para o ano que chega.
Internet: < https://cronicabrasileira.org.br> (com adaptações).