Abre-se uma janela do Centro Operário. Será a aula de
Dona Palmira em 1920 ou há reunião para discutir os estatutos?
Durante toda a minha infância, eles discutiram os estatutos. Eu
não podia entender nada, mas havia pontos terrivelmente sérios.
Era “Centro Operário de Proteção Mútua” ou “Centro Operário E
de Proteção Mútua”? Pela noite afora, ano após ano, um mulato
meio velho e magro, de óculos, o dedo em riste, a voz rascante,
atacava com extraordinária ferocidade aquele E. Não conseguiu
derrubá-lo; os operários talvez se sentissem fracos, sozinhos,
precisavam daquele E que os conjugava com outras camadas
sociais. Ficou o E, meu pai foi diretor e, quando morreu, teve
auxílio no enterro, tudo sem ser operário, tudo graças àquele E.
Sem o E eu talvez não tivesse estudado ali, não me sentaria no
comprido banco, onde o último da esquerda era o preto
Bernardino, e à direita, o rosto lindo de Lélia, com seus cabelos
doces e uma covinha quando sorria. Quando não estavam
discutindo os estatutos, ou providenciando um enterro de sócio,
com a bandeira do Centro em cima do caixão, os operários E
todos que queriam proteção mútua estavam dançando; sons de
pistom atravessam meu sono infantil; eu achava estranho e ao
mesmo tempo alegre e feliz haver baile na mesma sala onde eu
tinha aulas.
Rubem Braga. Em Cachoeiro. 200 crônicas escolhidas.
Rio de Janeiro: Record, 2003, p.55 (com adaptações)