Paris, fim do inverno, 1979.
Apesar do frio, abri um pouco a janela, o cheiro no
estúdio é insuportável. Tento fazer uma versão francesa de
Tecendo a manhã, meu aluno de Neuilly-sur-Seine se interessou
pela poesia brasileira, pinçou esse poema belíssimo e cabeludo
do João Cabral de Melo Neto, e ainda me pediu um comentário,
promessa de uma ótima gorjeta. É o aluno mais antigo, e o mais
empenhado em aprender a língua portuguesa. A gente se
conheceu no Café des Arts, onde eu distribuía folhetos
anunciando aulas de português (Brasil). É um diletante solitário,
entusiasmado com a arte e a literatura da América Latina e da
África. Nas primeiras aulas, depois dos meus comentários sobre a
situação política na América do Sul, ele disse que as atrocidades
só mudam de tempo e lugar. Ele se interessou pela poesia do João
Cabral quando lhe mostrei Estudos para uma bailadora
andaluza; quis ler outros, e assim chegamos ao Tecendo a
manhã. “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará
sempre de outros galos.” Comecei a escrever uma versão
francesa do poema, mas empaquei nestes versos: “e de outros
galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de
seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se
vá tecendo, entre todos os galos”. Nesta solidão e com esse frio,
sem fios de sol e gritos de galo, será difícil tecer a manhã em
Paris.
Milton Hatoum. Pontos de fuga.
São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 59-60 (com adaptações)