Amizades em risco
Publicado em 20/03/2023 | 15:36
Paulo Pestana
Crônica
Mário Quintana disse que a amizade é o amor que nunca
morre. É uma frase que serve para mostrar que até os poetas
erram. Amizades estão sendo rompidas a todo momento por
desrespeito a uma das regras basilares do sentimento, o respeito
às diferenças.
Há pouco, amigos de décadas deixaram se se falar e de
frequentar o mesmo boteco por discordâncias políticas; não é
caso isolado, ao contrário.
Mas a situação fica ainda mais grave quando também falha
uma instituição brasileira: a turma do deixa-disso. Aproveitando a
ausência dos dois beligerantes, a mesa começou a discutir,
inicialmente em tom de lamento, o rompimento dos camaradas,
mas logo alguém deu razão para um, enquanto outro justificava a
ação do segundo.
Antes que a discussão ficasse acalorada demais, um
sensato falou mais alto:
– Amigo meu não tem defeito – é o princípio de Blaise
Pascal: “o amor é cego, a amizade fecha os olhos”.
Os presentes entenderam o recado. Eu mesmo disse que
não tinha mais idade nem para fazer amigos novos, nem para
perder os velhos. É uma meia-verdade, até porque tenho feito
bons amigos. Mas o fato é que amigo não é coisa de se perder,
até porque nem a fé e os pulinhos para São Longuinho ajudam a
reencontrar.
O filme Os Banshees de Inisherin – que esteve na disputa
do Oscar – mostra a dor e a irracionalidade do rompimento de
uma amizade, usando a Guerra Civil Irlandesa como pano de
fundo para a frustração de Colm, que decide deixar de falar com
o velho amigo Pádraic.
O filme, à parte o monumental trabalho dos atores, é cheio
de defeitos, mas isso não vem ao caso. O que interessa é a
relação entre os personagens.
Músico, Pádriac culpa o amigo pela própria insignificância,
chega a dizer que as horas de conversa fiada no pub local o
impedem de evoluir intelectualmente e de cumprir o desejo de
deixar uma marca no mundo por meio de suas canções.
Por puro interesse pessoal, ele não quer mais perder tempo
com uma companhia que não ajuda seu objetivo – e diz isso com
todas as letras. Ainda que a custo da amizade.
A radicalização, como na guerra que dividiu o país entre
católicos e protestantes, deixando marcas que duram até hoje,
chega às raias do absurdo, terminando com uma automutilação
que, ao cabo, impede Colm de completar o desejo de fazer algo
relevante na música e, consequentemente, na vida – e desta
forma poder culpar definitivamente o ex-amigo pela frustração
pessoal.
Ainda não chegamos ao ponto de decepar os dedos, mas a
guerra está entre nós com o fanatismo de religiosos radicais. As
conversas continuam corrosivas, desafiadoras, ao ponto de
determinados assuntos – política, principalmente – fiquem
proibidos pelo bem de uma convivência mais harmônica, mas
seguramente mais falsa.
Aristóteles disse que a amizade pode existir entre as
pessoas mais desiguais, porque as torna iguais. O problema é
que ninguém mais quer ser igual a ninguém; há uma necessidade
de buscar uma marca pessoal em tudo. Ainda que seja uma
marca de estupidez e custe um bem tão precioso quanto a
amizade.
PESTANA, Paulo. Amizades em risco. Correio Braziliense, 20 de março de 2023.
Disponível em: https://blogs.correiobraziliense.com.br/
paulopestana/amizades-em-risco/. Acesso em: 25 mar. 2023.