Texto 1
A família dos porquês
A lógica costuma definir três modalidades distintas no uso
do termo “porque”: o “porque” causa (“a jarra espatifou-se
porque caiu ao chão”); o explicativo (“recusei o doce porque
desejo emagrecer”); e o indicador de argumento (“volte
logo, você sabe por quê”). O pensamento científico revelouse uma arma inigualável quando se trata de identificar,
expor e demolir os falsos porquês que povoam a
imaginação humana desde os tempos imemoriais: as
causas imaginárias dos acontecimentos, as
pseudoexplicações de toda sorte e os argumentos
falaciosos.
Mas o preço de tudo isso foi uma progressiva clausura ou
estreitamento do âmbito do que é ilegítimo indagar.
Imagine, por exemplo, o seguinte diálogo. Alguém sob o
impacto da morte de uma pessoa especialmente querida
está inconformado com a perda e exclama: “Eu não consigo
entender, isso não podia ter acontecido, por que não eu?
Por que uma criatura tão jovem e cheia de vida morre
assim?!”. Um médico solícito entreouve o desabafo no
corredor do hospital e responde: “Sinto muito pela perda,
mas eu examinei o caso da sua filha e posso dizer-lhe o
que houve: ela padecia, ao que tudo indica, de uma máformação vascular, e foi vítima da ruptura da artéria carótida
interna que irriga o lobo temporal direito; ficamos surpresos
que ela tenha sobrevivido tantos anos sem que a moléstia
se manifestasse”.
A explicação do médico, admita-se, é irretocável; mas seria
essa a resposta ao “por quê” do pai inconsolável? Os
porquês da ciência são por natureza rasos: mapas,
registros e explicações cada vez mais precisas e
minuciosas da superfície causal do que acontece. Eles
excluem de antemão como ilegítimos os porquês que mais
importam. O “porquê” da ciência médica nem sequer
arranha o “por quê” do pai. Perguntar “por que os homens
estão aqui na face da Terra”, afirma o biólogo francês
Jacques Monod, é como perguntar “por que fulano e não
beltrano ganhou na loteria”.
No macrocosmo não menos que no microcosmo da vida, as
mãos de ferro da necessidade brincam com o copo de
dados do acaso por toda a eternidade. Mas, se tudo
começa e termina em bioquímica, então por que – e para
que – tanto sofrimento?
In: GIANNETTI, Eduardo. Trópicos utópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016. p. 25-26. Adaptado.