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SILÊNCIO ENSURDECEDOR
Na era dos esportivos elétricos, além de assegurar a performance, modelos precisam manter vivo o ronco dos motores a
combustão que tanto seduz os fãs - Por André Sollitto
São celebrados – por quem gosta, é claro – os vilões do filme Mad Max: Estrada da Fúria, de 2015, do australiano George
Miller. Devotos do “Culto do V8”, mistura de religião e filosofia militar, bebem da atração por carros velozes e seus poderosos motores
a combustão, de onde tiram a força vital. O totem dessa seita ficcional é o propulsor do Ford Mustang. Ele pode ser reconhecido de
longe pelo ronco agressivo, espalhafatoso, em forma de fetiche. No mundo das coisas reais, sem o exagero da imaginação
cinematográfica, há uma turma com essa pegada – os petrolheads, viciados em veículos sobre quatro rodas, sobretudo se forem muito,
mas muito ruidosos. Como então adaptar o amor eterno pelo escarcéu das máquinas com o atual empenho para levar às ruas e estradas
os carros elétricos, ecológicos, menos poluentes, mas naturalmente mais silenciosos?
Pode soar como indagação bizantina, mas não é. Trata-se de preocupação real do mercado, atento aos nós ambientais mas
também ao gosto dos consumidores. Tome-se como o exemplo a própria Ford, que acaba de trazer ao Brasil o Mustang Mach-E, versão
eletrificada do clássico esportivo e primeiro veículo totalmente elétrico da montadora no país. O visual mudou. Ele virou um SUV,
maior e mais alto, de pegada familiar, mas rapidíssimo. É capaz de ir de 0 a 100 quilômetros por hora em apenas 3,7 segundos – ante
4,3 segundos do motor tradicional. Tudo isso, em calmaria sepulcral. Mas e aquele vruuuuuuuuum gostoso e infernal, afeito a não alijar
os adoradores? Deu-se um jeito, com o apoio de tecnologia de ponta. Ao selecionar o modo de “condução esportiva”, o motorista pode
optar por ativar uma simulação sonora de propulsão. [...] O resultado não é idêntico, mas quem sentiu e ouviu aprovou.
Convém não desdenhar do zelo pelo que emana da lataria. O alemão Dieter Landenberger, diretor dos arquivos históricos da
Porsche, chegou a definir o querido alarido da grife como uma “mistura única entre a melodia emocionante do motor boxer, o
crescendo das válvulas e o trombetear do sistema de escapamento”. [...] Na Europa, a montadora tentou registrar uma patente para a
simulação sonora que desenvolveu, mas as autoridades de propriedade intelectual acharam que o estrondo não era tão memorável para
ser reconhecido como único, e disseram “não”. A empresa está recorrendo da decisão, afirmando se tratar de uma criação artificial
desenvolvida por músicos e compositores de trilhas sonoras.
A Porsche não está sozinha. ABMWcontratou Hans Zimmer, autor de várias trilhas de Hollywood, para criar o som de seu BMW
i4. Para os saudosistas, há empresas que vendem kits específicos com caixas de som acopladas ao veículo, projetadas para reproduzir o
saudoso ruído. É movimento que faz um barulhão danado, porque a civilização avança, mas o já conhecido demora para ser
abandonado. Contudo, há quem caminhe na contramão, certo de abrir novas estradas. Achinesa BYD, que trouxe o esportivo Seal ao
Brasil, assumiu o silêncio quase total a bordo da cabine, com apenas uma ligeira sonoridade futurista do motor elétrico, e incluiu apenas
um alerta sonoro para pedestres. Os tempos estão mudando – mas é sempre bom não abandonar a história e desdenhar da cultura.
(Veja, 20/10/23)