Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões
não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim
exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós
nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos
povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a
lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor
da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às
épocas. Tudo se transforma, tudo varia o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os
séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações
cada vez maior, o amor da rua. [...]
Os dicionários só são considerados fontes fáceis de
completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei infólios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um
alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações...
Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da
vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarès ou em Amsterdã, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos
deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos
miseráveis da arte. [...] A rua é generosa. O crime, o delírio, a
miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. [...] A rua continua matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. [...]
A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo.
Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa
que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e
haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras
para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopeia
tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente
nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas.
[...]
Essas qualidades nós as conhecemos vagamente.
Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as
delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os
nervos com um perpétuo desejo incompreensível; é preciso
ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar: É fatigante o exercício?
Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa
de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de
Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando.
Flanar! [...] Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da
gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco [...]; é ver os bonecos pintados a giz nos
muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado
até a sua grande tela paga pelo Estado [...]
RIO, João do. A rua. In: A alma encantadora das ruas. Ministério da Cultura.Disponível em:
<http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/alma_encantadora_das_ruas.pdf>.
Acesso em: 11 jul. 2019.