ENTREVISTA COM ENI ORLANDI
M. S. – Você tem apresentado uma distinção
entre a formação e a capacitação no que tange à
formação de professores. Nesse sentido, de que forma
os pressupostos teóricos da Análise de Discurso
podem contribuir para a proposição de uma política
de formação para os profissionais de Letras, tanto em
nível de graduação, passando pelas chamadas
formações continuadas, ofertadas pelas Secretarias de
Educação de estados e municípios, quanto no âmbito
da pós-graduação?
E. O. – A distinção que faço entre formação e
capacitação não significa como está significada a
palavra formação em “formação continuada”. Ao
contrário, é uma noção que procurei formular para
abrigar a possibilidade de se pensar em uma prática
pedagógica de construção real de conhecimento, e
não presa ao imaginário escolar já significado antes
mesmo que se estabeleçam relações concretas com os
alunos. A distinção básica é a que estabeleço entre a
relação do ensino com a informação – capacitação –
e com o conhecimento, com o saber – formação. Na
capacitação, consumo e cidadania se conjugam.
Na conjuntura histórica atual, a alfabetização
e o desenvolvimento se declinam, então, em
“educação e mercado”, em que o mercado exige a
qualificação do trabalho, a qualificação do
trabalhador: um país educado. Isto significa um país
rico em que os cidadãos “educados” são capacitados
para o trabalho e circulam como consumidores de um
mercado de trabalho qualificado; neste caso, o da
capacitação, o denominador comum é o trabalho, e não o conhecimento. Basta a informação, o
treinamento. O mercado funciona como uma
premissa indefinida para se falar em
“sustentabilidade”
Esta palavrinha traz em seu efeito de memória
a de desenvolvimento, que é o que precisamos,
segundo o discurso dominante em uma sociedade
capitalista, sobretudo em países ditos pobres. A
capacitação é a palavra presente constantemente na
mídia, na fala de empresários, governantes e... na
escola. De nosso ponto de vista, este funcionamento
discursivo silencia a força da reivindicação social
presente, no entanto, na palavra formação. Pensando
politicamente, podemos dizer que a formação, e não
a capacitação, pode produzir um aluno “não
alienado”. Retomo, aqui, o conceito de K. Marx
(1844), segundo o qual a alienação desenvolve-se
quando o indivíduo não consegue discernir e
reconhecer o conteúdo e o efeito de sua ação
interventiva nas formas sociais.
A análise de discurso pode prover elementos
para que a formação, e não a capacitação, seja
incentivada como forma de relação com o
conhecimento. Já porque suas reflexões juntam
sujeito, língua, educação e formação social. Em
minhas reflexões, uno a isto uma teorização do sujeito
em que se tem os seus modos de individuação,
produzidos pela articulação simbólico-política do
Estado, através de instituições e discursos. Aí incluo,
nesta presente reflexão, a escola e os discursos do
conhecimento.
Consideramos que a educação, e, em
particular, o ensino da língua, como parte do que
tenho trabalhado como a individuação do sujeito,
neste caso, sendo a instituição a escola, poderia, se
bem praticado como processo formador do indivíduo
na sua relação com o social e o trabalho, dar
condições para que este sujeito “soubesse” que sabe a
língua e soubesse “ler e escrever”, de forma a, em sua
compreensão, ser capaz de dimensionar o efeito de
sua intervenção nas formas sociais, com todas as
consequências sociais e históricas que isto implica.
Em uma palavra, se desalienasse. O que a
capacitação não faz, pois o torna apenas um indivíduo
bem treinado e, logo, mais produtivo. Isto não o
qualifica em seu conhecimento, o que, com a
formação, se dá e produz o efeito de tornar esse sujeito mais independente, deixando de ser só mais
um instrumento na feitura de um “país rico”. Ele
estaria formado para dar mais um passo na direção de
não só formular como reformular e ressignificar sua
relação com a língua institucionalizada, a da escola,
mas também com a sociedade.
Ao invés de ser apenas um autômato de uma
empresa (com a capacitação), poderia ser um sujeito
em posição de transformar seu próprio conhecimento,
compreender suas condições de existência na
sociedade e resistir ao que o nega enquanto sujeito
social e histórico. Tudo isto, se pensamos na
formação - desde a educação básica, como o ensino
superior – leva-nos a dizer que há modos de formar
sujeitos preparados para descobertas e para
inovações. Sujeitos bem formados que podem
“pensar por si mesmos”, tocando o real da língua em
seu funcionamento e o da história, no confronto com
o imaginário que o determina.
ORLANDI, EniPulccinelli. Entrevista com EniOrlandi. [Entrevista
concedida a Maristela Cury Sarian] Pensares em Revista, São Gonçalo
– RJ, n. 17, p. 8-17, 2020. (Fragmento).