Leia o texto 4 a seguir para responder a questão.
Texto 4
De quem são os meninos de rua?
Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu
braço, falou qualquer coisa que não entendi. Fui logo
dizendo que não tinha, certa de que ele estava pedindo
dinheiro. Não estava. Queria saber a hora.
Talvez não fosse um Menino De Família, mas também
não era um Menino De Rua. É assim que a gente divide.
Menino De Família é aquele bem-vestido com tênis da moda
e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o
dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De Rua é
aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com
força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.
Ouvindo essas expressões tem-se a impressão de que
as coisas se passam muito naturalmente, uns nascendo De
Família, outros nascendo De Rua. Como se a rua, e não uma
família, não um pai e uma mãe, ou mesmo apenas uma mãe
os tivesse gerado, sendo eles filhos diretos dos
paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das
outras crianças, e excluídos das preocupações que temos
com elas. É por isso, talvez, que, se vemos uma criança bem-vestida chorando sozinha num shopping center ou num
supermercado, logo nos acercamos protetores, perguntando
se está perdida, ou precisando de alguma coisa. Mas se
vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com
uma caixa de chicletes na mão, engrenamos a primeira no
carro e nos afastamos pensando vagamente no seu
abandono.
Na verdade, não existem meninos De Rua. Existem
meninos NA rua. E toda vez que um menino está NA rua é
porque alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos
lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos
anos também são postos onde quer que estejam. Resta ver
quem os põe na rua. E por quê.
No Brasil temos 36 milhões de crianças carentes. Na
China existem 35 milhões de crianças superprotegidas. São
filhos únicos resultantes da campanha Cada Casal um Filho,
criada pelo governo em 1979 para evitar o crescimento
populacional. O filho único, por receber afeto “em
demasia”, torna-se egoísta, preguiçoso, dependente, e seu
rendimento é inferior ao de uma criança com irmãos. Para
contornar o problema, já existem na China 30 mil escolas
especiais. Mas os educadores admitem que “ainda não
foram desenvolvidos métodos eficazes para eliminar as
deficiências dos filhos únicos”.
O Brasil está mais adiantado. Nossos educadores sabem
perfeitamente o que seria necessário para eliminar as
deficiências das crianças carentes. Mas aqui também os
“métodos ainda não foram desenvolvidos”.
Quando eu era criança, ouvi contar muitas vezes a
história de João e Maria, dois irmãos filhos de pobres
lenhadores, em cuja casa a fome chegou a um ponto em que,
não havendo mais comida nenhuma, foram levados pelo pai
ao bosque, e ali abandonados. Não creio que os 7 milhões
de crianças brasileiras abandonadas conheçam a história de
João e Maria. Se conhecessem talvez nem vissem a
semelhança. Pois João e Maria tinham uma casa de verdade,
um casal de pais, roupas e sapatos. João e Maria tinham
começado a vida como Meninos De Família, e pelas mãos
do pai foram levados ao abandono.
Quem leva nossas crianças ao abandono? Quando
dizemos “crianças abandonadas” subentendemos que foram
abandonadas pela família, pelos pais. E, embora
penalizados, circunscrevemos o problema ao âmbito
familiar, de uma família gigantesca e generalizada, à qual
não pertencemos e com a qual não queremos nos meter.
Apaziguamos assim nossa consciência, enquanto tratamos,
isso sim, de cuidar amorosamente de nossos próprios filhos,
aqueles que “nos pertencem”.
Mas, embora uma criança possa ser abandonada pelos
pais, ou duas ou dez crianças possam ser abandonadas pela
família, 7 milhões de crianças só podem ser abandonadas
pela coletividade. Até recentemente, tínhamos o direito de
atribuir esse abandono ao governo, e responsabilizá-Io. Mas,
em tempos de Nova República*, quando queremos que os
cidadãos sejam o governo, já não podemos apenas passar
adiante a responsabilidade. A hora chegou, portanto, de
irmos ao bosque, buscar as crianças brasileiras que ali foram
deixadas.
(COLASANTI, Marina. A casa das palavras. São Paulo: Ática, 2002.)