Leia o texto abaixo e, em seguida, responda a questão pertinente:
Louco amor
(Ferreira Gullar)
Era dado a paixões, desde menino. Na escola,
aos oito anos, sentava-se ao lado de Nevinha, que
tinha a mesma idade que ele e uns olhos que pareciam
fechados: dois traços no rosto redondo e sorridente.
Quando se vestia, de manhã cedo, para ir à escola,
pensava nela e queria ir correndo encontrá-la. Puxava
conversa a ponto da professora ralhar. Mas, chegaram
as férias de dezembro, perguntou onde ela ia passá-las.
“No inferno”, respondeu. Ele se espantou, ela riu. “É
como minha mãe chama o sítio de meus avós em
Codó.” No ano seguinte, sua mãe o matriculou numa
escola mais perto de sua casa e ele nunca mais viu
Nevinha.
Na nova escola, enamorou-se de Teca, que
tinha duas tranças compridas caídas nos ombros. Era
engraçada e sapeca, brincava com todo mundo e não
dava atenção a ele. Já no ginásio, foi a Lúcia, de olhos
fundos, silenciosa, quase não ria. Amor à distância.
Uma vez ela deixa cair o estojo de lápis e ele,
prestimoso, o juntou no chão, e lhe entregou. Ela riu,
agradecida.
Enlouqueceu mesmo foi pela Paula, de 15 anos,
quando ele já tinha 22 e se tornara pintor. Era filha de
Bonetti, seu professor na Escola de Belas Artes e cuja
casa passou a frequentar, bem como outros colegas de
turma. A coisa nasceu sem que ele se desse conta, já
que a via como uma menina. Mas, certo dia, acordou
com a lembrança dela na mente, o perfil bem
desenhado, o nariz, os lábios, os olhos inteligentes. Ela
era muito inteligente, falava francês, já que vivera com
os pais em Paris e lá estudara. A partir daquela manhã,
quando visitava o professor era, na verdade, para revê-la. De volta a seu quarto, no Catete, sentia sua falta e
inventava pretextos para visitas. Ficava a olhá-la, o
coração batendo forte, louco para tomar-lhe as mãos e
dizer-lhe: “Eu te amo, Paula”.
Mas não se atrevia, embora já não conseguisse
pintar nem sair com os amigos sem pensar no
momento em que declararia a ela o seu amor. Mas não
o fazia e já agora custava a dormir e, quando dormia,
sonhava com ela. Mas eis que, numa das visitas à casa
do professor, não a encontrou. Puxou conversa com a
mãe dela e soube que havia ido ao cinema com um
primo. Quando chegou, foi em companhia dele, de mãos dadas. Era o Eduardo, que chegara dos Estados
Unidos, onde se formara.
Sentiu que o mundo ia desabar sobre sua
cabeça, mal conseguia ver os dois, sentados no divã da
sala, cochichando e rindo, encantados um com o outro.
Agora, acordar de manhã era um suplício, já
que a lembrança dela não lhe saía da cabeça. Evitava
agora ir à casa de Bonetti, que, entranhando-lhe a
ausência, telefonava para convidá-lo. Temia ir lá, mas
terminava indo, porque pelo menos podia revê-la, mas
voltava para casa arrasado. Muitas vezes nem entrava
em casa, com medo de se defrontar com a insuportável
realidade. Ficava pela rua andando à toa, até altas
horas da noite. Decidiu entregar-se totalmente a sua
pintura, comprou telas novas, tintas novas, mas
postado em frente ao cavalete, tudo o que conseguia
era pensar nela. “Então, vou fazer dela o tema de meus
quadros”, decidiu-se e iniciou uma série de retratos
dela, que eram antes alegorias patéticas e dolorosas.
Os colegas gostaram e contaram ao Bonetti, que pediu
para vê-los. Levou-lhe alguns dos quadros, que
mereceram dele entusiasmados elogios. Paula, depois
de elogiá-los, observou: “Ela parece comigo!”. Ele a
fitou nos olhos: “Ela é você”. Sem entender, ela sorriu
lisonjeada.
Paula e o primo se casaram e foram morar nos
Estados Unidos. Júlio ganhou um prêmio de viagem ao
exterior e foi conhecer os museus da Europa, fixando-se em Paris, que era na época o centro irradiador de
arte e literatura. De volta ao Brasil, conheceu Camila,
com quem se casou e teve dois filhos, uma menina e
um menino, que hoje estão casados e lhe deram netos.
Quanto a Paula, de que nunca mais tivera notícias,
soube que se separara do marido e voltara ao Brasil,
indo morar em São Paulo.
Júlio e Bonetti continuaram amigos. Já sem a
mesma frequência, ia visitá-lo naquele mesmo
apartamento de Botafogo, onde viveu com a mesma
mulher, mãe de Paula. Morreu dormindo, como queria.
Júlio foi ao velório, no Cemitério de São João Batista,
onde ele encontrou Paula, quarenta anos depois.
Ela estava sentada junto ao caixão, ao lado de
uma moça. “Júlio foi amigo de meu pai a vida toda...
Me conheceu menina.”
Falou aquilo com toda a naturalidade. “Que
estranha é a vida”, pensou ele, fitando o rosto da
mocinha que jamais poderia ter sido filha sua.
Gullar, Ferreira. A alquimia na quitanda: artes, bichos e
barulhos nas melhores crônicas do poeta. São Paulo:
Três Estrelas, 2016.