Declaração de amor em outdoor
(Carlos Drummond de Andrade)
Gostei, sim, da ideia daquele publicitário de São
Paulo, que concebeu e instalou na rua um outdoor de
24 metros quadrados, contendo uma declaração de
amor à sua mulher. Todo mundo, ao passar por lá,
ficou sabendo que Bob continua amando Cly, depois de
dez anos de casados, e que não abre.
Julgou-se a princípio que a declaração constituía
peça de campanha publicitária, para lançamento de
algum produto novo. Nada disso. Era anúncio,
realmente, mas de produto antiquíssimo, que não se
submete às leis do mercado, não é objeto de incentivos
fiscais, não depende de instruções do BNDE, não tem
títulos apregoados na Bolsa de Valores e, quer chova,
troveja ou faça dia claro, está sempre à disposição de
quem quer curti-lo: o amor.
O namorado Bob quis fazer uma surpresa à sua
mulher, no aniversário de casamento, e acabou
surpreendendo toda a população que viu o outdoor ou
dele tomou conhecimento pela televisão e pelos
jornais. Como? Bob não está colocando nenhum
barbeador novo, nenhum cigarro sem nicotina mas com
sabor de céu, nenhum objeto absolutamente
indispensável ao viver moderno da humanidade? Bob
não é candidato a deputado? Não pretende vender
alguma coisa a seus semelhantes, que se habituaram à
conexão cartaz-comércio, e gasta aquele despropósito
de espaço para fazer agradinho à sua excelentíssima?
Então é porque o amor continua existindo de fato,
e é gostoso não apenas senti-lo mas também
proclamá-lo. Somos forçados a reconhecer que o amor
entre duas pessoas continua existindo e até
prosperando, pois alguém sentiu necessidade de
exprimi-lo, de público, usando o veículo que atinja mais
diretamente a direção dos passantes: o painel. Bob
poderia ter gravado em cassete a sua expansão lírica e
fazê-la ouvir de manhã, quando Cly acordasse; podia
gravar uma plaquinha de ouro a título de broche, com
a declaração inscrita, e colocá-la junto à xícara de Cly,
na hora do café; podia exprimir o número único de um
jornal que estampasse apenas juras e pipilos de amor,
depositando-o à cabeceira de Cly ou encaminhando-o
pelo correio; podia...
Bob podia fazer mil coisas particulares,
deliciosamente íntimas, para conhecimento e uso
exclusivo de Cly. Se preferiu tornar público o seu
sentimento, foi, em primeiro lugar, devido à sua
formação profissional. Se fosse aviador, soltaria no ar
uma fumaça com a frase declaratória; homem do mar,
pintaria no costado da embarcação os dizeres
amorosos; e assim por diante. Sendo publicitário,
adotou o processo adequado à transmissão da
mensagem: o outdoor.
Em segundo lugar (ou em primeiro, passando o
motivo acima para segundo?), porque sentiu que seu
amor a Cly, sendo um caso típico e tradicional de um sentimento que vem desde o começo do mundo e que
por isso mesmo corre perigo de parecer banal ou
ultrapassado, quando não é mesmo negado por
indivíduos que se dispõem a reformar a estrutura da
vida, reduzindo-a a um feixe de obrigações e ambições,
geradores de conflitos e guerras, em que o dinheiro e o
poder assumem a liderança do mundo (puxa, mas este
período está mais comprido do que a Belém-Brasília),
sentindo isso, Bob achou de bom preceito opor a tantos
sinais de desumanização o seu sinal de 24 metros
quadrados de ternura. Ternura de homem por mulher,
garantia de continuação da espécie, que aqui e ali
busca autodestruir-se. Não é lindo?
Amorosos de gosto mais refinado talvez achassem
preferível que os dizeres do outdoor fossem outros. A
gíria é efêmera e o amor que dura há dez anos já viu
passar muitas e muitas expressões populares. Se, em
vez de “Estou contigo e não abro”, o marido feliz
copiasse um verso de amor de um dos grandes poetas
da língua, ou o inventasse (pois amor põe engenho e
arte em quem o sente), o outdoor se tornaria obra
digna de tombamento pelo IPHAN, resistindo ao tempo
como um dos monumentos do coração, que merecem
ser preservados. Bob não pensou nisso, quis a
mensagem direta aos transeuntes de hoje, na
linguagem do dia. Ainda assim, fez uma bonita coisa.
Prova de que o amor continua, em meio a toda sorte
de absurdos, violências e marotices políticas e outras, e
que nenhum índice de inflação, nenhum terremoto,
nenhuma sinistra maquinação é capaz de cassá-lo em
face da Terra.
Andrade, Carlos Drummond de. As palavras que ninguém diz
/ Carlos Drummond de Andrade; seleção Luzia de Maria. –
12ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2008. 126 p. –
(Mineiramente Drummond; Crônica)