RUTH GUIMARÃES: CENTENÁRIO DE UMA
PIONEIRA
Joaquim Maria Botelho
“Mulher, negra, pobre e caipira – eis as
minhas credenciais”, disse Ruth Guimarães num
discurso na Bienal Nestlé de Literatura, em 1983.
Ruth tinha plena consciência de sua condição
humana e de sua vocação para a literatura
quando, jovenzinha de 26 anos, lançou Água
funda (1946), romance que causou frisson na
crítica literária da época e se tornou um marco da
literatura regionalista.
Ao lado de Antonio Candido – que
publicou crítica elogiosa no jornal Correio
Paulistano –, Érico Veríssimo foi um dos
primeiros a comentarem a obra muito
favoravelmente, num texto que a própria Editora
Livraria do Globo passou a usar nas propagandas
do livro de Ruth: “Há muito que não leio prosa
brasileira tão rica de contactos com a terra e com
a vida, tão fresca, tão natural e tão gostosa”. O
romancista gaúcho tinha sido gerente do
departamento editorial da Livraria do Globo e
várias vezes se encontrou com a escritora em
suas visitas à sucursal de São Paulo, dirigida por
Edgard Cavalheiro. Ficaram amigos, mas
seguiram caminhos diferentes e ficaram muito
tempo sem se ver.
Ruth passou a infância na fazenda
Campestre, que o pai administrava, local hoje
pertencente ao município de Pedralva, no sul de
Minas Gerais. Ali, conviveu com as famílias de
peões e colonos, e recolheu muitas histórias.
Com a avó, aprendeu as tradições dos índios e
dos negros. Já em São Paulo, decidiu recontar
essas histórias, segura de que tinha em mãos o
tesouro da tradição oral do povo que amava.
Jovem atrevida, reuniu os racontos de
assombração, duendes e pequenos demônios
como o saci, a mula sem cabeça e o lobisomem,
e foi procurar Mário de Andrade.
O mestre a recebeu, elogiou, corrigiu e
orientou-a nas técnicas de pesquisa folclórica,
entre 1942 e 1944. Mário de Andrade não viu o
livro pronto porque morreu em 1945 e a obra saiu
depois de Água funda, em 1950, com o título de
Os filhos do medo. Ampla pesquisa folclórica
sobre o diabo e todas as manifestações
demoníacas no imaginário do homem do Vale do
Paraíba, a publicação lhe valeu um verbete
na Enciclópédie Française de la Pléiade,
publicada pela editora Gallimard, fazendo de
Ruth Guimarães a única escritora latinoamericana a receber essa distinção.
O autor é jornalista, escritor e mestre em
literatura e crítica literária pela PUC-SP.
Adaptado do site:
https://revistacult.uol.com.br/home/cult-301-ruth-guimaraes/ , acesso em 22 de março de 2024.