Minha redação do cursinho cruzou o mundo
como se fosse do Verissimo
Era o meu segundo vestibular para medicina.
Estava na minha aula preferida — não pelo tema, mas
pelo professor. Valter era o nome dele, um jornalista
que decidiu como carreira ajudar adolescentes não só
a escrever, mas a pensar. Naquele dia, ele mostrou a
imagem de um pêndulo. A ideia era refletir sobre como
o equilíbrio nos impede de viver os extremos.
Por coincidência, a minha redação para aquele
assunto já estava pronta. Havia escrito no dia anterior
um texto que decidi chamar de “Quase”. Arranquei a
folha do meu caderno, dobrei e passei para a frente.
Da última fila à primeira, o bilhete chegou até o professor.
“Posso ler em voz alta?”, ele perguntou.
O que aconteceu naquele instante? Nada. Recebi um elogio, e algumas meninas do cursinho pediram para guardar uma versão do texto, que eu copiei
à mão. Era 2002 e eu ainda demoraria a descobrir que
o acaso nem sempre acontece de repente. No meu
caso, o destino agiu devagar.
Quatro anos depois, já na quarta fase da faculdade de medicina, em vez de felicíssima pela oportunidade de ingressar em uma carreira que traz tanto
prestígio, eu divertia as minhas colegas com o que escrevia quando estava entediada. Rezava — coisa que
eu não faço sempre — por um sinal.
O universo me respondeu nas páginas do jornal O Globo, na edição de Páscoa, em uma coluna
que dizia assim: “Eu gostaria de encontrar o verdadeiro autor do ‘Quase’ para agradecer a glória emprestada e para lhe dar um recado. No Salão do Livro de
Paris, ganhei da autora um volume de textos e versos
brasileiros muito bem traduzidos para o francês com
uma surpresa: eu estava entre Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e outros escolhidos adivinha com que texto? Em francês, ficou ‘Presque’.”
Quem me procurava era Luis Fernando Verissimo, a quem a autoria daquele punhado de palavras
que saíram de uma sala de aula e se espalharam pelo
mundo vinha sendo atribuída. Na semana seguinte, o
escritor divulgou o meu nome e, para mim, a história
terminava aí.
Depois de desfeito o engano, no entanto, passei a receber muitas mensagens de pessoas dizendo
que a minha redação tinha mudado as suas vidas, ajudado a continuar ou terminar o casamento, a trocar de
trabalho e a escolher uma profissão. “Eu carrego seu
texto como um amuleto”, me disseram.
O “Quase” foi o meu grande acaso. Eu não sei
quais são as chances de uma folha de caderno precisar chegar tão longe para ajudar o próprio autor, mas
o que eu sei é que essa chance existe.
Conversar com tanta gente corajosa me motivou a buscar uma vida menos morna e resistir à tentação de escolher por medo. Eu, que iria ser médica, me
tornei jornalista. Troquei Florianópolis pela Austrália.
Incluí na minha família brasileira um amor indiano.
Ao longo desses anos, o “Quase” virou letra de
música, tatuagem, rap na Guiana Francesa, espetáculo de dança, questão de vestibular, de concurso público e até anúncio de funerária. Fez parte das turnês da
Ana Carolina e também foi lido pela Ana Maria Braga.
O texto tem sido usado em escritórios de psicologia,
em teatros de colégio e foi traduzido para diversas línguas espontaneamente.
Até hoje eu recebo as mensagens mais amáveis de gente que encontrou força ou conforto nas
minhas palavras. O que essas pessoas talvez não
saibam é que elas são, genuinamente, a minha maior
inspiração.
Sarah Westphal Trabalha com Marketing e mora em Central Coast,
na Austrália (Casos do Acaso. Folha de São Paulo, 23/05/2021.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/casos-do-acaso/2021/05/minha-redacao-do-cursinho-cruzou-o-mundo-comose-fosse-do-verissimo.shtml)