Considere atentamente o trecho a seguir, de autoria de Nelson Rodrigues, para responder a próxima questão.
“Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que o brasileiro premiado. O inglês, não, nem o
francês. Um ou outro recebe qualquer prêmio com modéstia e tédio. Quando deram a Churchill o Nobel de Literatura, ele nem foi lá. Mandou a mulher e continuou em Londres, tomando o seu uísque e mamando o seu charuto.
O francês ou o alemão também reagiria com o mesmo superior descaro. E que faria o brasileiro? Sim, o brasileiro
que, de repente, recebesse um telegrama assim: ‘Ganhaste o prêmio Nobel. Gustavo da Suécia’. Pergunto se
algum brasileiro, vivo ou morto, teria a suprema desfaçatez de mandar um representante, como fez o Churchill?
Por exemplo: o meu amigo Otto Lara Resende. Se a Academia Sueca, por unanimidade ou sem unanimidade, por
simples maioria, o preferisse. Semelhante hipótese, que arrisquei ao acaso, já me fascina. O Otto, prêmio Nobel.
Que faria ele? Ou que faria o Jorge Amado? Ou o Érico Veríssimo? Eis o que eu queria dizer: qualquer um de nós
iria, a nado, buscar o cheque e a medalha. Nem se pense que faríamos tal esforço natatório por imodéstia. Pelo
contrário. Nenhuma imodéstia e só humildade. A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui, certa
vez, a uma exposição de gado. E o júri, depois de não sei quantas dúvidas atrozes, chegou a uma conclusão. Vi,
transido, quando colocaram no pescoço da vaca a fitinha e a medalha. Claro que a criança tem uma desvairada
imaginação óptica. Há coisas que só a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira e selvagem. Cabe então a pergunta: e por que até as vacas
brasileiras reagem assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um de nós carrega um potencial de
santas humilhações hereditárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas frustrações e misérias. No fim
de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não
encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima. Se não me entenderam, paciência. E tudo nos
assombra. Um simples “bom dia” já nos gratifica. Nunca me esqueço de minha iniciação jornalística. Trabalhei
num jornal que não pagava. Mas o diretor, um escroque perfumadíssimo e, insisto, mais cheiroso do que uma
cocote, era o gênio do cumprimento. Não passava por um funcionário sem lhe apertar a mão, e sem lhe sorrir, e
sem lhe piscar o olho. E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para o faxineiro, a própria remuneração”.
(A vaca premiada, de Nelson Rodrigues, com adaptações).