Atenção: Para responder à questão, considere o texto abaixo.
Já tive muitas capas e infinitos guarda-chuvas, mas acabei me cansando de tê-los e perdê-los; há anos vivo sem nenhum
desses abrigos, e também, como toda gente, sem chapéu. Tenho apanhado muita chuva, dado muita corrida, me plantado debaixo de
muita marquise, mas resistido.
Ontem, porém, choveu demais, e eu precisava ir a três pontos diferentes do bairro. Pedi ao moço de recados, quando veio
apanhar a crônica para o jornal, que me comprasse um chapéu-de-chuva que não fosse vagabundo demais, mas também não muito
caro. Ele me comprou um de pouco mais de trezentos cruzeiros.
Depois de cumprir meus afazeres voltei para casa, pendurei o guarda-chuva a um canto e me pus a contemplá-lo. Senti então
uma certa simpatia por ele; meu velho rancor contra os guarda-chuvas cedeu a um estranho carinho, e eu mesmo fiquei curioso de
saber qual a origem desse carinho.
Pensando bem, ele talvez derive do fato de ser o guarda-chuva o objeto do mundo moderno mais infenso a mudanças. Sou
apenas um quarentão, e praticamente nenhum objeto de minha infância existe mais em sua forma primitiva.
O guarda-chuva tem resistido. Suas irmãs, as sombrinhas, já se entregaram aos piores desregramentos futuristas e tanto
abusaram que até caíram de moda. Ele permaneceu austero, negro, com seu cabo e suas invariáveis varetas.
Reparem que é um dos engenhos mais curiosos que o homem já inventou; tem ao mesmo tempo algo de ridículo e algo de
fúnebre, essa pequena barraca ambulante.
Já na minha infância era um objeto de ares antiquados, que parecia vindo de épocas remotas, e uma de suas características
era ser muito usado em enterros. Por outro lado, esse grande acompanhador de defuntos sempre teve, apesar de seu feitio grave, o
costume leviano de se perder, de sumir, de mudar de dono. Ele na verdade só é fiel a seus amigos cem por cento, que com ele saem
todo dia, faça chuva ou sol, apesar dos motejos alheios; a estes, respeita. O freguês vulgar e ocasional, este o irrita, e ele se aproveita
da primeira distração para sumir.
(Adaptado de: BRAGA, Rubem. Coisas antigas. In: 200 Crônicas escolhidas. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.217-9)