À beira do abismo
Em 1888, Van Gogh compartilhou, por três meses, uma casa com o pintor Paul Gauguin. Um dia, o amigo resolveu retratá-lo
enquanto ele pintava seus girassóis. Ao ver pela primeira vez o quadro, que o flagra no último lugar em que poderia estar, pois um
pintor se julga sempre fora da pintura, Van Gogh exclamou: “Sou eu, é claro, mas eu me tornando louco”.
A arte como expressão da loucura ou, ao contrário, como opção pela loucura? Van Gogh teve um psiquiatra que, adepto da
segunda hipótese, pensou em “curá-lo” da pintura. É claro, não conseguiu. A arte como vírus, como uma contaminação?
Penso nas poucas telas que Clarice Lispector pintou. Telas tensas, desagradáveis: manifestações de gênio ou de insanidade?
Elas ajudaram a deprimir Clarice ou, ao contrário, ajudaram a salvá-la? Recordo a Clarice que visitei um dia, sentada em sua cozinha
diante de uma fatia de bolo, um tanto apática, a me dizer: “Comer bolo não me interessa. O que eu preciso é de água. De água e de
literatura”.
Vista assim, como uma necessidade primária, a literatura revela sua potência, mas também seus riscos. Riscos que os
escritores, para se consolar, transportam para o interior da escrita. Para dar sentido àquelas partes de si que não pode controlar, o
escritor deve correr o risco de sair de si. Ele se dedica justamente àquilo que, anestesiados pela ideia de normalidade, evitamos.
A matéria da literatura vem, de fato, dessas zonas abissais em que as certezas se esgarçam, a nitidez se esvai e a dúvida
comanda. Muitos não suportam. “Nascemos e crescemos num cárcere e por isso achamos naturais esses ferros nos pulsos e nos
pés”, escreveu o alemão Georg Büchner. Mas os escritores, não: eles preferem sangrar mãos e pés, e bordejar o abismo, a sucumbir.E isso se parece com a loucura.
O problema é que aquilo que o escritor enfrenta está sempre dentro de si. De certa forma, em consequência, todo escritor
escreve “contra si”. Daí a dúvida que Machado sintetiza em O alienista: estarão os escritores no lugar dos médicos, que amparam e
curam, ou de seus pacientes, que resistem e esperneiam? A resposta não é fácil: eles ocupam ao mesmo tempo os dois lugares:
vestem o jaleco da saúde, mas também os grilhões da ignorância.
(Adaptado de: CASTELLO, José. Sábados inquietos. Brasília, IMP, 2013, p. 6-7)