Atenção: Para responder a questão, considere a crônica abaixo.
Quando lhe disse que um vago conhecido nosso tinha morrido, vítima de tumor no cérebro, levou as mãos à cabeça:
− Minha Santa Efigênia!
Espantei-me que o atingisse a morte de alguém tão distante de nossa convivência, mas logo ele fez sentir a causa de sua
perturbação:
− É o que eu tenho, não há dúvida nenhuma: esta dor de cabeça que não passa! Estou para morrer.
Conheço-o desde menino, e sempre esteve para morrer. Não há doença que passe perto dele e não se detenha, para convencê-lo em iniludíveis sintomas de que está com os dias contados. Empresta dimensões de síndromes terríveis à mais ligeira
manifestação de azia ou acidez estomacal:
− Até parece que andei comendo fogo. Estou com pirofagia crônica. Esta cólica é que é o diabo, se eu fosse mulher ainda
estava explicado. Histeria gástrica. Úlcera péptica, no duro.
Certa ocasião, durante um mês seguido, tomou injeções diárias de penicilina, por sua conta e risco. A chamada dose cavalar.
− Não adiantou nada − queixa-se ele. − Para mim o médico que me operou esqueceu alguma coisa dentro de minha barriga.
Foi operado de apendicite quando ainda criança e até hoje se vangloria:
− Menino, você precisava de ver o meu apêndice: parecia uma salsicha alemã.
No que dependesse dele, já teria passado por todas as operações jamais registradas nos anais da cirurgia: “Só mesmo entrando na faca para ver o que há comigo”. Os médicos lhe asseguram que não há nada, ele sai maldizendo a medicina: “Não descobrem o que eu tenho, são uns charlatães, quem entende de mim sou eu”. O radiologista, seu amigo particular, já lhe proibiu a entrada
no consultório: tirou-lhe radiografia até dos dedos do pé. E ele sempre se apalpando e fazendo caretas: “Meu fígado hoje está que
nem uma esponja, encharcada de bílis. Minha vesícula está dura como um lápis, põe só a mão aqui”.
− É lápis mesmo, aí no seu bolso.
− Do lado de cá, sua besta. Não adianta, ninguém me leva a sério.
[...]
Ultimamente os amigos deram para conspirar, sentenciosos: o que ele precisa é casar. Arranjar uma mulherzinha dedicada,
que cuidasse dele. “Casar, eu?” − e se abre numa gargalhada: “Vocês querem acabar de liquidar comigo?” Mas sua aversão ao
casamento não pode ser tão forte assim, pois consta que de uns dias para cá está de namoro sério com uma jovem, recém-diplomada
na Escola de Enfermagem Ana Néri.
(SABINO, Fernando. As melhores crônicas. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012, p. 71-72)