Atenção: Para responder à questão, leia a crônica O lendário país do recall, de Moacyr Scliar.
1. Leitora manda boneca para recall e não a recebe de volta. Como explicar para uma criança que seus brinquedos foram embora
há três meses e não voltaram? (Cotidiano, 25/02/2008)
2. “Minha querida dona: quem lhe escreve sou eu, a sua fiel e querida boneca, que você não vê há três meses. Sei que você
sente muitas saudades, porque eu também sinto saudades de você. Lembro de você me pegando no colo, me chamando de filhinha,
me dando papinha... Você era, e é, minha mãezinha querida, e é por isso que estou lhe mandando esta carta, por meio do cara que
assina esta coluna e que, sendo escritor, acredita nas coisas da imaginação.
3. Posso lhe dizer, querida, que vivi uma tremenda aventura, uma aventura que em vários momentos me deixou apavorada.
Porque tive de viajar para o distante país do recall. Aposto que você nem sabia da existência desse lugar; eu, pelo menos, não sabia.
Para lá fui enviada. Não só eu: bonecas defeituosas, ursinhos idem, eletrodomésticos que não funcionavam e peças de automóvel
quebradas. Nós todos ali, na traseira de um gigantesco caminhão que andava, andava sem parar. Finalmente chegamos, e ali
estávamos, no misterioso e, para mim, assustador país do recall. Um homem nos recebeu e anunciou, muito secamente, que o nosso
destino em breve seria traçado: as bonecas que tivessem conserto seriam consertadas e mandadas de volta para os donos; quanto
tempo isso levaria era imprevisível, mas três meses era o mínimo. Uma boneca que estava do meu lado, a Liloca, perguntou, com os
olhos arregalados, o que aconteceria a quem não tivesse conserto. O homem não disse nada, mas seu sorriso sinistro falava por si.
4. Passamos a noite num enorme pavilhão destinado especialmente às bonecas. Éramos centenas ali, algumas com
probleminhas pequenos (um braço fora do lugar, por exemplo), outras já num estado lamentável. Estava muito claro que para várias
de nós não haveria volta.
5. Naquela noite conversei muito com minha amiga Liloca − sim, querida dona, àquela altura já éramos amigas. O infortúnio tinha
nos unido. Outras bonecas juntaram-se a nós e logo formamos um grande grupo. Estávamos preocupadas com o que poderia nos
suceder. De repente a Liloca gritou: ‘Mas gente, nós não somos obrigados a aceitar isso! Vamos fazer alguma coisa!’. Nós a olhamos,
espantadas: fazer alguma coisa? Mas fazer o quê? Liloca tinha uma resposta: vamos tomar o poder. Vamos nos apossar do país do
recall.
6. No começo aquilo nos pareceu absurdo. Mas Liloca sabia do que estava falando. A mãe da dona dela tinha sido uma militante
revolucionária e sempre falava nisso, na necessidade de mudar o mundo, de dar o poder aos mais fracos. Ora, dizia Liloca, ninguém
mais fraco do que nós, pobres, desamparados e defeituosos brinquedos. Não deveríamos aguardar resignadamente que decidissem o
que fazer com a gente.
7. De modo, querida dona, que estamos aqui preparando a revolução. Breve estaremos governando o país do recall. Mas não
se preocupe, eu a convidarei para me visitar. Você poderá vir a qualquer hora. E não precisará de recall para isso.”
(Adaptado de: Moacyr Scliar. Histórias que os jornais não contam. Porto Alegre: L&PM, 2018)