A diferença entre ele com os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um
cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o
cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam
jantar − o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão [...]. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas,
sofrendo espantada [...] mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas
para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite − tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um
cego mascando goma despedaçava tudo isso.
(LISPECTOR, Clarice. “Amor”, Laços de Família. São Paulo: Rocco, 1998)