Atenção: Para responder à questão, baseie-se no texto abaixo.
O que será da escrita sem solidão?
Já não resta na minha vida nenhuma solidão. Me pergunto se haverá solidão em algum lugar, se alguém é ainda capaz de
estar só, de alcançar um estado de solidão. Não me refiro, claro, à penúria afetiva, ao abandono, ao desamparo, males diários que se
encontram por toda parte, no meio da multidão. Penso mais num silêncio dilatado, vasto, num silêncio que é a ausência de notícias,
de palavras, de ruídos. Penso num retiro íntimo, um lugar em que já não se ouça a respiração ofegante do mundo.
Andei lendo Escrever, de Marguerite Duras, um relato de como ela construiu para si uma solidão densa, de como só assim se
tornou capaz de escrever. “A solidão é aquilo sem o qual não fazemos nada”, ela diz. “Aquilo sem o qual já não vemos nada.” Para a
escrita, nada seria mais necessário que a solidão, algum grau de asilo pessoal seria sua condição imprescindível. Fiquei pensando
o que será da escrita quando já não houver, em absoluto, a solidão. Fiquei pensando o que será da leitura quando não houver, em
absoluto, silêncio.
Por anos, escrever me exigiu uma busca irrequieta por espaços calmos, espaços isolados do alvoroço que nos cerca, que nos
acossa. Quando não consegui construir a solidão em minha casa, me refugiei no consultório abandonado do meu pai, me exilei em
outro país, no apartamento dos meus avós mortos, me recolhi em cantos ocultos de bibliotecas. Como se não pudesse ser visto, como
se escrever fosse uma subversão, um segredo.
A esta altura desisti de estar só. Me falta tempo para essas fugas, e já percebi que o mundo dispõe de fartos recursos para me
achar onde quer que eu esteja. Quando consigo ignorar seus apelos, ouço minhas filhas no quarto ao lado, brincando, rindo, cogito
me juntar a elas e me reprimo. Escrever deixou de ser ato subversivo e passou a ser, por vezes, cruel: ignoro minha filha que
esmurra a porta e clama pelo pai enquanto não termino a frase de vez. Quando elas partem, ainda não há solidão: a casa reverbera
os seus gritos, recria sua presença em infinitos objetos. Nesta casa nunca mais haverá solidão, e tudo o que eu escrever aqui trará
essa marca indelével.
(Adaptado de: FUKS, Julián. Lembremos do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 119-120)