Atenção: Para responder à questão, baseie-se no texto abaixo.
O canarinho
Atacado de senso de responsabilidade, num momento de descrença de si mesmo, Rubem Braga liquidou entre os amigos a
sua passarinhada. Às crianças aqui de casa tocaram um bicudo e um canário. O primeiro não aguentou a crise da puberdade,
morrendo uns dias depois. O menino se consolou, forjando a teoria da imortalidade dos passarinhos: não morrera, afirmou-nos, com
um fanatismo que impunha respeito ou piedade, apenas a sua alma voara para Pirapora, de onde viera. O garoto ficou firme com a
sua fé. A menina manteve a possessão do canário, desses comuns, que mais cantam por boa vontade que por vocação. Não importa,
conseguiu depressa um lugar em nossa afeição.
Era um canário ordinário, nunca lera Bilac, e parecia feliz em sua gaiola. Nós o amávamos desse amor vagaroso e distraído
com que enquadramos um bichinho em nossa órbita afetiva. Creio mesmo que se ama com mais força um animal sem raça, um
pássaro comum, um cachorro vira-lata, o gato popular que anda pelos telhados. Com os animais de raça, há uma afetação que
envenena um pouco o sentimento; com os bichos, pelo contrário, o afeto é de uma gratuidade que nos faz bem.
Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive, a programá-lo em minhas preocupações.
Verificava o seu pequeno coche de alpiste, renovava-lhe a água fresca, telefonava da rua quando chovia, meio encabulado perante
mim mesmo com essa minha sentimentalidade tardia, mas que havia de fazer?
(Adaptado de: CAMPOS, Paulo Mendes. Os sabiás da crônica. Antologia. Org. Augusto Massi. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 216.)