Musa natalina
O ano, propriamente, se compõe de onze meses. Dezembro não conta: é só para desejar que os restantes sejam propícios.
Parece que o sistema está longe da perfeição; chegaríamos a ela num calendário que abrangesse onze meses de bons augúrios e um
de execução deles. Como está, os trinta e um dias não chegam para imaginarmos tudo de ótimo em benefício de todo mundo. Fica
sempre uma fração larga de mundo a que não atingem os nossos desejos fraternos. China, Costa do Ouro, Oceania...
Mas não é preciso ir tão longe. Mesmo perto de nós, mesmo dentro de nós, as lembranças costumam esquivar-se à
apresentação espontânea, e até à convocação formal. Julgamos ter no coração um canteiro de afetos; contudo, uma grande área nele
permanece inculta e cheia de ervas, não direi daninhas, mas ervas. O que admira não é a quantidade de pessoas a quem dedicamos
um pensamento amigo, mas a multidão, o número realmente infinito, de outras em cuja existência nem sequer reparamos.
Foi para suavizar as lacunas da memória sentimental que se inventaram mensagens de boas-festas. Contudo, seria desejável
que as saudações de Natal oferecessem maior variedade, ou pelo menos exprimissem anseios mais concretos, definindo a situação
particular de cada classe ou componente dela, e não apenas um vago ideal de felicidade. Penso que cada homem tem direito de pedir
bem determinada coisa a seu semelhante.
(Adaptado de: ANDRADE, Carlos Drummond. Fala, amendoeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 86-87)