Atenção: Leia o trecho da crônica “Modéstia”, de Carlos Drummond de Andrade, para responder à questão.
Certo Juca Ludovico, oficial de carpinteiro, acordou um dia com a alma transformada. Começou por faltar ao serviço, a que era
assíduo. Surpreendendo a consorte, dirigiu-se ao botequim e pagou cerveja para todos. Juca não era forreta, mas a libação matinal e
coletiva não tinha propósito. Aos que chegavam e inquiriam com o olhar, ele ia dizendo: “Abanquem-se e tomem parte na minha
satisfação. Vão acontecer grandes coisas por meu arbítrio, e quero estar à altura dos acontecimentos”. Os ouvintes pasmavam e
bebiam. Juca não entrava no miúdo, falava em honras, feitos e bens, sem particularizá-los, mas sentia-se que pisara a caçamba de
altas cavalarias.
O pior é que não endoidecera; estava dominado pelo Capeta, que no sono lhe inflara o apetite de glória. Raciocinava
perfeitamente nas coisas triviais, insistindo porém em que sua vida mudara. Ofereceu emprego a um, deu a outro uma fazenda de
gado. Pedia apenas que esperassem duas semanas, tempo bastante para receber do Banco da Inglaterra o ouro que ali devia estar à
sua disposição, e que de boa mente partilharia com a multidão. Pode-se descrer do juízo de um homem que rasgue dinheiro, não
porém do de outro que reparta dinheiro conosco.
Disfarçado em fogueteiro, e por via das dúvidas embuçado na capa preta, o Diabo misturava-se com a turba, sorria, esfregava
os cascos. Apenas dona Neném, senhora idosa e devota, olhava tudo de beiço reprovador, e interpelou-o: “Juca, meu sobrinho, de
onde te vem tamanho poder?”. Ele não se deu por achado: “Ora, minha tia, então não vê que é de meu padrinho sr. são José? Ele me
procurou esta noite e disse: Vai e faze brilhar o nosso nome. És a flor dos Josés, e por tua valia serei cultuado na terra toda”. “Pois eu
duvido”, retrucou dona Neném. “Vamos entrar na igreja e conversar com são José.”
Dona Neném, Juca e a multidão entraram de roldão. O altar do santo nem estava florido; era todo humildade e recato. Juca
postou-se em relevo e soltou o verbo: “Aqui está, meu padrinho, a multidão que eu trouxe para servi-lo. Se o senhor me prestigiar,
como espero, eles levarão sua imagem por toda parte e receberão grandezas. Faça um sinal com a ponta do dedo mindinho, e minha
tia se convencerá”.
O dedo de são José não se mexeu. “São José”, continuou Juca, “nosso trato está firme. Eu o estou cumprindo, agora é a sua
vez. Preciso de meios para agir. A propaganda custa caro. Tenho de distribuir mercês a amigos e inimigos, atrair incrédulos. Depende
do senhor, padrinho”.
São José não respondia. “Será possível que o senhor não escute bem? Uma palavrinha sua, e irei a uma cadeia de rádio e
televisão iniciar a campanha de esclarecimento universal.”
O santo, na moita. “Ele está assim porque ainda não me lembrei de melhorar o seu altarzinho, ora veja! Fique tranquilo, meu
santo. Vou fazer-lhe uma igreja de ouro e em volta construirei uma cidade inteira em sua honra; será a primeira do mundo e nela só
habitarão os eleitos, sob minha chefia. Combinado? Agora mova o dedinho.”
A expectativa era enorme. Dona Neném, trêmula, chegada ao altar, viu, horrorizada, mover-se, não o dedo, mas a mão inteira
de são José. E estendendo-se o braço, a mão pousou no ombro de Juca. “Estão vendo?”, parecia dizer o olhar deste, pois a boca, maravilhada, não piava. E são José sorrindo, mansamente, disse estas palavras: “Juca, volte à oficina, pegue da enxó e da plaina e trabalhe como de costume. Essas coisas não lhe ficam bem, meu filho”. Ouviu-se um estouro no adro. Era o Diabo que explodia, de ódio.
(Adaptado de: ANDRADE, Carlos Drummond de. A bolsa e a vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2012)