Ainda hoje, quando lanço o olhar ao mar, imagino a vida de meus avós como ilhas distantes, cercadas pela vastidão de um oceano de
histórias (muitas delas guardadas na linha de um horizonte que não pode mais ser lido). No alto do Morro de São Sebastião, contemplo o sol
nascente e me inspiro a iniciar estas linhas. Talvez elas não contenham toda a verdade, talvez haja imprecisões e deslizes históricos, mas foi assim
que eu as recebi, pela boca dos que sobreviveram.
leiri-san inspecionava as conversas dos navios que nasciam no estaleiro que dirigia com disciplina. Há décadas os japoneses iniciaram a
colonização da ilha de Taiwan, tomada da China após a guerra sino-japonesa. Para lá a família leiri emigrou para prosperar. Chiyoko, filha do
patriarca leiri, cresceu entre finas bonecas de porcelana, tendo os melhores instrutores, tornando-se de pianista a carateca. Sempre ávida por
conhecimento, aprendeu com seu tio diversos procedimentos, tais como a realização de partos e, sobretudo, a quiropraxia. Chiyoko se transformou
em uma mulher extraordinária, nadando em alto-mar e, apesar de sua compleição esguia, aventurando-se até a praticar sumô. Após aprender
tantas coisas, não poderia ter se tomado outra coisa a não ser professora.
Naquele dia, apesar da triste guerra, Chiyoko estava feliz. Era o dia do aniversário de seu pai. Não importava a ela que seu otosan
estivesse em um leito de hospital nem que o medo rondasse cada esquina. Ela tinha conseguido, a grande custo, algumas iguarias que seu pai
gostava de comer. Era para comemorar a data, para celebrar a vida. E seus passos eram alegres quando a sirene tocou. E era alegre o dia quando as
bombas caíram.
O hospital em que seu pai estava foi atingido. A vida naufragou. [...] Por ter aprendido tantas coisas com o tio médico, Chiyoko auxiliava os
feridos durante a guerra, que estava para ser perdida.
(Adaptado de: KONDO, André. Origens. Editora do Brasil, 2019. Edição Eletrônica)