Atenção: Leia o texto “Ardil da desrazão”, de Eduardo Giannetti, para responder à questão.
Imagine uma pessoa afivelada a uma cama com eletrodos colados em suas têmporas. Ao se girar um botão situado em local
distante, a corrente elétrica nos eletrodos aumenta em grau infinitesimal, de modo que o paciente não chegue a sentir. Um
hambúrguer gratuito é então ofertado a quem girar o botão. Ocorre, porém, que, quando milhares de pessoas fazem isso − sem que
cada uma saiba das ações das demais −, a descarga elétrica gerada é suficiente para eletrocutar a vítima. Quem é responsável pelo
quê? Algo tenebroso foi feito, mas de quem é a culpa? O efeito isolado de cada giro do botão é, por definição, imperceptível − são
todos “torturadores inofensivos”. Mas o efeito conjunto é ofensivo ao extremo. Até que ponto a somatória de ínfimas partículas de
culpa se acumula numa gigantesca dívida moral coletiva? − O experimento mental concebido pelo filósofo britânico Derek Parfit dá o
que pensar. A mudança climática em curso equivale a uma espécie de eletrocussão da biosfera. Quem a deseja? A quem interessa?
O ardil da desrazão vira do avesso a “mão invisível” da economia clássica. O aquecimento global é fruto da alquimia perversa de
incontáveis ações humanas, mas não resulta de nenhuma intenção humana. E quem assume − ou deveria assumir − a culpa por ele?
Os 7 bilhões de habitantes da Terra pertencem a três grupos: o primeiro bilhão, no cobiçado topo da escala de consumo, responde
por 50% das emissões de gases-estufa; os 3 bilhões seguintes por 45%; e os 3 bilhões na base da pirâmide (metade sem acesso a
eletricidade) por 5%. Por seu modo de vida, situação geográfica e vulnerabilidade material, este último grupo − o único inocente − é o
mais tragicamente afetado pelo “giro de botão” dos demais.
(GIANNETTI, Eduardo. Trópicos utópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016)