Estatuto do Amor
1. Não esperes aquele ano em que, por obra de lua violência, a tua família seja dizimada, para só então
descobrires a gravidade indizível de tua infâmia. Para saberes que gozo terias sentido se, em vez de matá-la, a
tivesses levado ao peito enquanto vivia.
2. Mergulha, sim, na liturgia do amor e renuncia à tua descabida ira. O amor é e será sempre teu melhor
gesto na terra. O único capaz de projetar luz sobre esta precária existência humana.
3. Não permitas que, sob o jugo de tua ira, mulher e filhos fiquem ao desabrigo da sorte, ingrata e
imprevidente.
4. Defende o teu lar de ti mesmo. Da tua ferocidade, da tua paixão desenfreada, da ânsia de golpear, de
mutilar, de maltratar, como se te coubesse este desapiedado e falso exercício da justiça.
5. Mas se, no futuro, o amor à mulher se esgote, não é razão para deixar em seu lugar os traços do
desamor, o estigma da maldade. Nenhum pedaço de carne humana merece ser golpeado pela indiferença,
pela violência, pela injustiça. Portanto, não abatas a tiro, a tapas, a arranhões, o corpo da mulher.
6. Não lhe negues, então, o olhar compassivo, as lágrimas conspurcadas por uma realidade que traiu
teus sonhos. Quem quer que esteja no recinto sagrado do lar é, ao mesmo tempo, o sucessor do teu horror e
da lua capacidade de maravilhar-se.
7. Aprenda que o outro é o teu lar. É o teu corpo, o teu nome, o teu outro rosto. É o verso e o reverso de
tuas entranhas. É o espelho de tua irrenunciável humanidade.
(Adaptado de: PIÑON, Nélida. Uma furtiva lágrima. Rio de Janeiro: Record, 2019. pp. 15-18)