Texto 1
A arte de envelhecer
- Dráuzio Varella
[1º§]Achei que estava bem na foto. Magro, olhar vivo, rindo
com os amigos na praia. Quase não havia cabelos brancos entre
os poucos que sobreviviam. Comparada ao homem de hoje, era a
fotografia de um jovem. Tinha 50 anos naquela época, entretanto,
idade em que me considerava bem distante da juventude. Se
me for dado o privilégio de chegar aos 90 em pleno domínio da
razão, é possível que uma imagem de agora me cause impressão
semelhante.
[2º§]O envelhecimento é sombra que nos acompanha desde a
concepção: o feto de seis meses é muito mais velho do que o embrião
de cinco dias. Lidar com a inexorabilidade desse processo
exige uma habilidade na qual nós somos inigualáveis: a adaptação. Não há animal capaz de criar soluções diante da adversidade
como nós, de sobreviver em nichos ecológicos que vão do calor
tropical às geleiras do Ártico.
[3º§]Da mesma forma como ensaiamos os primeiros passos
por imitação, temos de aprender a ser adolescentes, adultos e a
ficar cada vez mais velhos. A adolescência é um fenômeno moderno.
Nossos ancestrais passavam da infância à vida adulta sem
estágios intermediários. Nas comunidades agrárias, o menino de sete anos trabalhava na roça e as meninas cuidavam dos afazeres
domésticos antes de chegar a essa idade.
[4º§]A figura do adolescente que mora com os pais até os 30
anos, sem abrir mão do direito de reclamar da comida à mesa e
da camisa mal passada, surgiu nas sociedades industrializadas
depois da Segunda Guerra Mundial. Bem mais cedo, nossos avós
tinham filhos para criar.
[5º§]A exaltação da juventude como o período áureo da existência
humana é um mito das sociedades ocidentais. Confinar
aos jovens a publicidade dos bens de consumo, exaltar a estética,
os costumes e os padrões de comportamento característicos
dessa faixa etária tem o efeito perverso de insinuar que o declínio
começa assim que essa fase se aproxima do fim.
[6º§]A ideia de envelhecer aflige mulheres e homens modernos,
muito mais do que afligia nossos antepassados. Sócrates
tomou cicuta aos 70 anos, Cícero foi assassinado aos 63, Matusalém
sabe-se lá quantos anos teve, mas seus contemporâneos
gregos, romanos ou judeus viviam em média 30 anos. No início
do século 20, a expectativa de vida ao nascer nos países da Europa
mais desenvolvida não passava dos 40 anos.
[7º§]A mortalidade infantil era altíssima; epidemias de peste
negra, varíola, malária, febre amarela, gripe e tuberculose dizimavam
populações inteiras. Nossos ancestrais viveram num
mundo devastado por guerras, enfermidades infecciosas, escravidão,
dores sem analgesia e a onipresença da mais temível das
criaturas. Que sentido haveria em pensar na velhice quando a
probabilidade de morrer jovem era tão alta? Seria como hoje preocupar-nos
com a vida aos cem anos de idade, que pouquíssimos
conhecerão.
[8º§]Os que estão vivos agora têm boa chance de passar dos
80. Se assim for, é preciso sabedoria para aceitar que nossos atributos
se modificam com o passar dos anos. Que nenhuma cirurgia
devolverá aos 60 o rosto que tínhamos aos 18, mas que
envelhecer não é sinônimo de decadência física para aqueles que
se movimentam, não fumam, comem com parcimônia, exercitam
a cognição e continuam atentos às transformações do mundo.
[9º§]Considerar a vida um vale de lágrimas no qual submergimos
de corpo e alma ao deixar a juventude é torná-la experiência
medíocre. Julgar, aos 80 anos, que os melhores foram aqueles
dos 15 aos 25 é não levar em conta que a memória é editora
autoritária, capaz de suprimir por conta própria as experiências
traumáticas e relegar ao esquecimento inseguranças, medos, desilusões
afetivas, riscos desnecessários e as burradas que fizemos
nessa época. Nada mais ofensivo para o velho do que dizer que
ele tem "cabeça de jovem". É considerá-lo mais inadequado do
que o rapaz de 20 anos que se comporta como criança de dez.
[10º§]Ainda que maldigamos o envelhecimento, é ele que nos
traz a aceitação das ambiguidades, das diferenças, do contraditório
e abre espaço para uma diversidade de experiências com as
quais nem sonhávamos anteriormente.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 23/01/2016. Texto adaptado