Texto 1 – Células-tronco podem ser o segredo da origem e
evolução de seres multicelulares [fragmento; adaptado]
Por Bruno Vaiano
Ernst Haeckel era estudante de medicina, filho de um conselheiro
da corte prussiana, e “provavelmente o homem mais bonito que
eu já havia visto”, escreveu um de seus alunos. Ele e sua prima de
primeiro grau, Anna, eram apaixonados desde a adolescência – o
que, longe de ser um problema, era o sonho de todo clã
aristocrático da Europa no século 19: Darwin, por exemplo, se
casou com sua prima, e o irmão dela, com a irmã de Darwin. A
ideia era manter a herança na família e preservar o poder dos
sobrenomes.
Haeckel era o partidão perfeito, não fosse um problema: sua
semelhança com Darwin não parava no casamento endogâmico.
Ele também queria ser naturalista. O que, no século 19, equivalia
a contar para seu tio-do-pavê-e-futuro-sogro que você largaria
Medicina da USP para ser músico. Para convencer a família de
que conseguiria sustentar sua prima-noiva, ele saiu em turnê pelo
sul da Europa, estudando animais marinhos nas praias e
desenhando-os em minúcias.
Deu certo. Haeckel escreveu best-sellers, virou professor
universitário e suas ilustrações foram uma sensação. Com a
grana no bolso, casou-se com Anna. Um ano e meio depois, aos
29 anos, ela morreu (talvez de febre tifoide, mas não houve
diagnóstico). Deprê e niilista, ele abandonou a fé religiosa e
abraçou de vez a evolução por seleção natural. Viciou-se em
trabalho, dormia quatro horas por noite e começou a traçar
imensas árvores da vida na Terra, que indicavam o grau de
parentesco entre as espécies.
Nem todos os insights de Haeckel estavam certos. Mas, dentre
suas hipóteses de arrepiar os cabelos da Igreja, uma, em
particular, sobrevive na biologia: nós (e todos os animais da
Terra) somos netos do Bob Esponja.
Questões porosas
As esponjas são tubos de células que se apoiam em rochas, no
fundo do mar. A água entra pelas paredes desses cilindros, que
filtram os nutrientes e deixam o resto sair pela abertura no topo.
[...]
Em 1874, Haeckel percebeu que as células filtradoras de comida
das esponjas, os coanócitos, têm exatamente a mesma arquitetura
de micróbios aquáticos chamados coanoflagelados. Eles são
criaturinhas microscópicas inofensivas e onipresentes nas águas
da Terra [...].
Pertencem ao reino Protista, aquele em que os biólogos põem as
coisas que eles não sabem direito o que são (rs). Um saco de
gatos taxonômico. Protistas não são fungos, animais nem plantas.
Mas suas células têm estruturas complexas que esses seres vivos
grandões também apresentam – como um núcleo para guardar o
DNA, e usinas de geração de energia chamadas mitocôndrias. [...]
Existem protistas multicelulares, visíveis a olho nu, como as algas
(pois é, elas não são plantas). Mas muitos, como as amebas e
protozoários, são feitos de uma célula só. É o caso dos
coanoflagelados. Vistos no microscópio, eles têm a forma de uma
bola em cima de um cone. Como a silhueta de um buraco de
fechadura, ou de um peão de xadrez. A bola é a célula em si,
onde fica o DNA e o resto do maquinário biológico. Já o cone é
formado por 30 ou 40 microvilosidades, filamentos que parecem
tentáculos de uma água-viva. Do centro desse cone, emerge um
filamento maior, chamado flagelo, parecido com o que equipa os
espermatozoides – e com a mesma função: nadar. O conjunto da
obra fica assim: ~>O
É de se imaginar que esse rabinho ficasse atrás, empurrando a
célula, como ocorre com o espermatozoide. Mas a verdade é que
ele nada ao contrário, com o cone e o rabinho para frente. Como
um avião com hélice no nariz: O<~
O coanoflagelado se move assim porque as microvilosidades atuam
como “boca”: vão captando bactérias e pequenas partículas de
material orgânico que pairam na água.
A sacada de Haeckel foi que uma esponja-do-mar funciona como
uma colônia de coanoflagelados, que se uniram em uma muralha
para aumentar a área de captação de comida. A diferença é que
eles abanam coletivamente seus flagelos – lembre-se, os
“rabinhos” – para sugar a água para dentro da esponja, e não
para se mover. Um é Maomé indo à montanha, o outro atrai a
montanha para Maomé. Os coanócitos das esponjas atuais
seriam herdeiros de coanoflagelados. Protistas em carreira solo
que se juntaram para formar o primeiro animal, o ancestral
comum de toda a fauna da Terra.
Vale esclarecer algo: isso não quer dizer que nossos ancestrais
sejam os mesmos coanoflagelados que hoje nadam pelados em
Santos. Eles eram, isso sim, um protista pré-histórico, que existiu
há uns 700 milhões de anos, muito parecido tanto com os
coanoflagelados quanto com as células das esponjas – e cuja
linhagem se bifurcou para dar origem a ambos. [...]
Carambolas
A hipótese esponjosa de Haeckel permaneceu incólume, por
140 anos, como nossa melhor explicação para a origem dos
animais. Até que apareceram as carambolas do mar – nome
popular dos ctenóforos, bichos aquáticos translúcidos e
gelatinosos, que lembram águas-vivas com forma de bola de
rugby. Em 2017, um estudo comparativo de genomas identificou
as carambolas, e não as esponjas, na raiz da irradiação dos
animais. E essa conclusão tem respaldo no registro fóssil: no sul
da China, há um fóssil de carambola de 631 milhões de anos na
formação geológica de Doushantuo – uma data que corresponde
à época mais aceita para a origem dos seres multicelulares.
Nem uma coisa nem outra são suficientes para tirar o trono
pioneiro das esponjas. Afinal, sempre dá para encontrar um fóssil
mais antigo – neste exato momento, uma potencial esponja de
890 milhões de anos está gerando debate entre paleontólogos. O
registro geológico não é uma foto perfeita da realidade,
principalmente quando estamos tratando de animais moles, que
geralmente se decompõem sem deixar rastro. Além disso,
análises filogenéticas estão sujeitas a alguma incerteza: métodos
e pesquisadores diferentes extraem conclusões distintas dos
mesmos DNAs.
Seja como for, essas duas descobertas reacendem o debate. E
afora as carambolas, há um outro front de pesquisa que desafia
as ideias de Haeckel: a investigação de protistas ainda mais
estranhos que os coanoflagelados, que alternam entre estágios
de vida uni e multicelulares.
Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/celulas-troncopodem-ser-o-segredo-da-origem-e-evolucao-de-seresmulticelulares/