Futuro a distância
A aura de sacralidade que envolve o corpo humano e, por extensão, a prática médica enfrenta
seguidos desafios postos por inovações técnicas, como a telemedicina, hoje, ou a reprodução assistida, no
passado. A inquietação daí surgida justifica prolongar o debate, mas não afastar indefinidamente futuros
aperfeiçoamentos.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) baixara resolução, para entrar em vigor em maio,
regulamentando o atendimento a distância. Foram tantas as reações contrárias e de questionamento que a
norma foi revogada, pois não haveria tempo hábil para processar todas as objeções e sugestões.
Mas muito do que se regulamentava ali já existe como praxe de mercado, caso de consultas
remotas.
Embora exame físico e anamnese presencial constituam os fundamentos básicos da relação entre
médico e paciente, existem casos em que são dispensáveis (como na entrega de resultados de testes
laboratoriais) ou ficam impossibilitadas pela distância.
A resolução do CFM estipulava regras para esse tipo de encontro, como ser necessariamente
precedido por um contato pessoal, contar com autorização do paciente e ficar gravado em meio digital.
Fixava, ainda, normas para outros procedimentos, como telecirurgias.
Algumas questões levantadas fazem sentido, como a obrigatoriedade de gravação da teleconsulta.
Se não se exige tal coisa em encontros presenciais, por que fazê-lo quando se recorre a meios tecnológicos?
Abre-se flanco considerável para deslizes de privacidade e se reforça o preconceito retrógrado contra a
modalidade inovadora.
Por detrás da aparente preocupação com a qualidade do atendimento, está a suspeita, oculta-se o
zelo corporativo que tantas vezes resiste ao aumento de produtividade. Não há mal algum em banalizar (no
bom sentido da palavra) a telemedicina, se isso não acarretar prejuízo ao doente.
Não são raras as consultas, hoje em dia, em que o médico dispensa uma conversa atenta e a
interação física com pacientes em favor da realização de exames laboratoriais ou de imagem. Identifica-se
algo de tecnocrático e desumanizador nesse tipo de relacionamento, com alguma dose de razão.
Admitindo que seja necessário combater tal tendência, a melhor maneira de fazê-lo seria rever o tipo
de formação oferecida nas faculdades de medicina, como já se faz em alguns estabelecimentos. Não será
com obstáculos à tecnologia, quando ela se provar mais útil e barata, que se reduzirá o distanciamento entre
médicos e pacientes.
Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 08 mar. 2019.