O futuro do trabalho ou o trabalho sem futuro?
Marcelo Augusto Vieira Graglia
Billy Turnbull era um rapaz astuto, nos seus recém-completados 14 anos de vida. Naquela manhã fria
de maio de 1831, caminhava pela rua principal de Bedlington em direção à mina que ficava no lado oeste da
cidade, próxima à estrada que levava ao norte. Por entre a névoa, Billy já distinguia as pedras da igreja de
São Authbert. Cerca de 400 metros abaixo, virou à esquerda, após a casa de Walter Daglass. Três portas
acima, havia um arco que levava a um pátio com seis residências e um pomar. As casas eram decrépitas,
para dizer o mínimo. O campo de batatas ficava do outro lado da parede dos fundos, seguia por ali para cortar
caminho.
Naquela manhã fria, quando Billy Turnbull finalmente chegou à entrada da mina, a querela já estava
armada. Dezenas de homens, vestidos em seus farrapos e com seus rostos tingidos pelo pó preto do carvão,
se aglomeravam em torno da máquina a vapor recém-adquirida pelo Sr. Stephens. Com suas pás e picaretas,
amotinados, golpeavam o equipamento que respondia emitindo longos chiados. Em pouco tempo, a máquina
parecia morta, imóvel e silenciosa. Assustado, Billy viu Brian Llewellin saindo do meio dos mineiros e vindo
em sua direção. Quando o amigo se aproximou, perguntou: O que está havendo, Brian? Ao que este
respondeu: Não sou Brian, meu nome é Ned Ludd.
A história acima foi construída a partir de personagens fictícios, mas baseada em fatos históricos.
Ned Ludd era a alcunha utilizada por muitos dos trabalhadores envolvidos em protestos e sabotagens. O
ludismo foi um movimento de trabalhadores iniciado na Inglaterra, no início do século 19, que utilizou a
destruição de máquinas como forma de pressionar os empregadores contra as condições precárias e contra
a mecanização que causava demissões e substituição de funções mais qualificadas por outras de pouca
exigência técnica e mais mal remuneradas.
No campo do trabalho humano, é histórico o temor pelos efeitos potencialmente destruidores da
tecnologia sobre os postos de trabalho, simbolicamente representado pelo movimento ludista. Nesta segunda
década do século 21, novamente a emergência de uma nova onda de inovação tecnológica reacende a
polêmica com visões diametralmente opostas: de um lado, a daqueles que vislumbram um futuro brilhante,
no qual a tecnologia libertaria a humanidade da obrigação do trabalho duro, repetitivo, desestimulante, ao
mesmo tempo que elimina doenças, promove a longevidade, o conforto e o deleite com novas possibilidades
lúdicas e sensoriais trazidas por artefatos tecnológicos e ambientes digitais; de outro, em posição antagônica,
há aqueles que temem as consequências potencialmente nefastas da proliferação da tecnologia de forma
intensa por tantos campos sensíveis. Soma-se ainda o risco da desumanização das relações e da
interferência voraz de sistemas de inteligência artificial (IA) em campos eminentemente humanos, num
cenário de pós-humanismo cibernético.
O que alimenta esses temores? Embora a automação tenha sido historicamente confinada a tarefas
rotineiras envolvendo atividades baseadas em regras explícitas, a IA está entrando rapidamente em domínios
dependentes de reconhecimento de padrões e pode substituir os humanos em uma ampla gama de tarefas
cognitivas não rotineiras, seja em relação ao trabalho industrial, de serviço ou de conhecimento. Nessa
transformação, há aspectos claramente positivos e outros que inspiram maior reflexão.
Parafraseando a célebre frase narrada por Tucídides, na colossal obra História da Guerra do
Peloponeso, quando a delegação da cidade de Corinto se empenhava em convencer os relutantes espartanos
a abandonar seu temor em declarar guerra a Atenas: não devemos temer a tecnologia (Atenas), o que
devemos temer são a nossa ignorância, a nossa indiferença e a nossa inércia. A ignorância, no sentido de
não entendermos ou não buscarmos entender o processo histórico que ora se movimenta; a indiferença, no
sentido de não nos sensibilizarmos com os efeitos deletérios possíveis, especialmente sobre grandes parcelas
menos protegidas ou desfavorecidas da nossa sociedade, de ignorarmos os riscos; ademais, a inércia,
traduzida pelo não agir, enquanto indivíduos, sociedade e governos não se preparam devidamente, não
estabelecem estratégias adequadas, não constroem seus diques, seus programas, projetos e políticas
públicas robustas e suficientes para enfrentar um mundo em transformação.
John Maynard Keynes, em Economic possibilities for our grandchildren (1930), argumentava que o
aumento da eficiência técnica havia ocorrido de forma mais rápida do que seria possível para lidar com o
problema da absorção da força de trabalho. A depressão mundial – consumada com a quebra da Bolsa de
Nova York em 1929 e a enorme anomalia do desemprego que se estabeleceu – impedia a clareza de visão
necessária para que muitos pudessem captar as tendências que se afiguravam, como a do desemprego
estrutural. Para Keynes, isso significava “desemprego devido à nossa descoberta de meios de economizar o
uso do trabalho ultrapassando o ritmo em que podemos encontrar novos usos para o trabalho”. O economista
previa que, mantidas as taxas de crescimento da produtividade geradas pela incorporação de tecnologias nos
processos produtivos, e outras condições, em 100 anos o problema econômico mundial da escassez poderia
ser resolvido. Em contrapartida, esse ganho de produtividade se daria, principalmente, pela substituição do
trabalho humano; portanto, não seria necessário, no futuro, um contingente tão grande de pessoas
trabalhando. Dessa forma, o principal problema econômico seria de distribuição de riqueza, não mais de
escassez.
A nova onda de inovação tecnológica tem características que a diferem das anteriores, como as da
eletricidade, do automóvel, do computador, da internet. Entre elas, a ruptura do padrão de crescimento dos
empregos concomitante ao crescimento econômico. Isso nos leva a três questões distintas. Em primeiro lugar,
a questão da distribuição de renda enquanto processo a ser revisto e adequado aos novos tempos; em
segundo, a questão da transição segura de uma sociedade economicamente baseada na renda do trabalho
e emprego para outra em que não haja para muitos; e, por último, mas não menos importante e desafiador, a
construção e a viabilização de alternativas para a falta do trabalho enquanto fonte de significado e propósito
subjetivos de vida.
A chegada dos chamados modelos de IA do tipo LLM – Large Language Models –, treinados a partir
de algoritmos de aprendizagem profunda, com uso de quantidades colossais de dados, permitiu o
desenvolvimento de produtos surpreendentes, como o ChatGPT, o Bard e o Midjourney. Esses produtos
furaram a bolha técnica onde essa tecnologia vinha sendo desenvolvida, ao possibilitar que milhões de
pessoas e organizações pudessem utilizar seus recursos nas mais diferentes aplicações. Ao mesmo tempo,
trouxeram a concretude das possibilidades de substituição de inúmeras tarefas e funções humanas,
reacendendo antigos temores.
Neste momento, há enormes diferenças entre as pesquisas e as projeções sobre o impacto dessas
tecnologias. Há argumentos frágeis, e mesmo outros desonestos, tentando desqualificar as preocupações
com o risco da eliminação de muitos postos de trabalho. Alguns destes apelam para uma aritmética primitiva
e descabida, de que novos empregos e profissões surgirão e compensarão aqueles perdidos. Há dois
equívocos nesta lógica: a de que o futuro sempre repete o passado e a de que se trata de uma conta de
subtração. A realidade põe por terra esses argumentos: por um lado, milhões de pessoas desempregadas ou
subempregadas, por outro, milhares de vagas não preenchidas pelas empresas por conta da sofisticação das
competências exigidas. Isto sem falar do fenômeno da precarização do trabalho, bem representado pelos
modelos de plataformas digitais. O pensamento de risco sugere que deveríamos considerar um cenário de
intensa substituição de postos de trabalho por sistemas, robôs e máquinas e de crescimento da oferta de
postos de trabalho precarizados. Não há mal algum, nessas circunstâncias, em nos prepararmos para isto. A
história nos mostra o quanto é mais sábio prevenir do que remediar. E, preparados para o adverso, sabendo
que a imagem do futuro não está ainda formada, poderemos esperar pela serendipidade.
Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/.>. Acesso em: 03 nov. 2023.