Falácia do injustificável
Por Margareth Dalcolmo
Inacreditável que, em meio a tantos problemas relevantes e preocupações no momento que vivemos,
com guerras insanas, recrudescimento de ódios, vilipêndio de culturas, necessidade de reconstruir tanta
coisa, e, por outro lado, maravilhas tecnológicas que nos inspiram e desafiam em torná-las acessíveis ao
maior número de pessoas, estejamos diante de uma discussão sobre algo tão sobejamente nocivo, em todos
os sentidos, como os dispositivos eletrônicos de fumar. Mas o fato é que nas últimas semanas se intensificou
o assunto, sob a pressão de produtores e políticos, para que a regulamentação vigente no Brasil desde 2009
e ratificada em 2022 seja revista, liberando a comercialização.
Independentemente do teor de qualquer argumento, subjetivo ou científico, a configurar uma retórica
construída sobre o que poderíamos definir como uma criação do mal, é preciso deixar claro, para os não
iniciados nessa já cansada discussão, que após tentativas de captar novos adictos em nicotina, ao longo dos
anos, com uso de filtros, seguidas de formulações chamadas “light”, surgem no mercado, nos últimos quinze
anos, os dispositivos eletrônicos de fumar. Se fossem apenas suntuários e lúdicos, como tantos outros objetos
de consumo da nossa contemporaneidade, seriam aceitáveis. Mas não. Surgiram da obstinação da indústria
em lucrar, após a redução do número de fumantes em várias regiões do planeta. Eles não são inocentes, eles
não podem ser travestidos de “redutores de danos” em pessoas que querem abandonar os cigarros
convencionais, uma vez que contém altas doses de nicotina, que é a substância altamente viciante. Estamos
assim a criar novas legiões de dependentes. E aos que nos questionam, então o porquê de ser reaberta essa
discussão em consulta pública pela Anvisa, como ora ocorre, por sessenta dias, esclarecemos que esse é
um procedimento de boas práticas em processos regulatórios, e não necessariamente modifica o racional.
O Brasil como país vitorioso em sua pioneira luta contra os cigarros convencionais de direitos individuais,
reduzindo substantivamente o número de usuários de quase 40% para menos de 10% da população, também
o é na regulação que criou, desde 2009, proibindo a comercialização de qualquer produto de tabaco aquecido
em território nacional. É falacioso afirmar que fabricar, gerar empregos e impostos superaria os gastos com
saúde em decorrência das doenças.
É repetitivo afirmar que há consenso entre especialistas que a indústria do tabaco seja responsável por
causar dezenas de doenças e 12% dos óbitos no mundo, de acordo com as estimativas da OMS. O uso
desses dispositivos desencadeou até mesmo o surgimento de uma nova doença, denominada Evali (Doença
Pulmonar Associada aos Produtos de Cigarro eletrônico ou Vaping), que pode levar o paciente à UTI, ou
mesmo à morte, em decorrência de insuficiência respiratória. É falacioso afirmar que o Evali foi apenas um
surto, ocorrido nos Estados Unidos, causado por concentrações sem controle de substâncias, entre elas o
THC.
É falsa também a informação que a utilização de dispositivos eletrônicos de fumar no país quase
quadruplicou em 4 anos. Toda a publicidade para a venda desses produtos não tem como alvo os
dependentes do cigarro tradicional, mas sim um novo mercado consumidor composto, principalmente, por
jovens, adolescentes e até mesmo crianças. No Brasil, entre estudantes de 13 a 17 anos, 16,8% já
experimentaram cigarro eletrônico, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), que
contempla o período de 2009 a 2019.
Na reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa dos últimos dias, houve manifestações subjetivas de
pessoas, o que não deverá ser considerado em análise técnica frente aos relatórios absolutamente bem
documentados com base na cronologia dos fatos científicos e experiências de regulamentação de outros
países, apresentados nos votos dos diretores, em particular pelo Diretor Presidente Barra Torres. A Academia
Nacional de Medicina também publicou contundente parecer contra qualquer liberação desses produtos.
Como os senhores da guerra, historicamente não matam, mandam matar e não morrem, mandam morrer,
imagino que nenhum dono da poderosa indústria tabageira fume dispositivos eletrônicos ou estimulem que
seus filhos o façam, em nome da preservação da saúde e do bem estar e tampouco se permitam a desfaçatez
do argumento de “redução de danos”.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/a-hora-da-ciencia/[acesso em dez. de 2023]