A questão refere-se ao texto a seguir.
A fisiologia do corpo desempregado
Veny Santos
Ao receber a notícia, colocou as mãos diante dos olhos, não tão próximas ao rosto, e esperou. Aos
poucos, cobriu-se o corpo com a dormência da aurora no amanhecer de um dia já perdido. Estavam ambas
petrificadas. As mãos, por anos encarregadas de trabalhar, agora eram observadas como se função não mais
tivessem. Perderam o emprego. Anatomicamente as mesmas. Fisiologicamente desconhecidas. Quando passa muitos dos anos vividos em um trabalho, dedicando-se não apenas à sobrevivência
mas também ao ofício que confere sentido às habilidades adquiridas, o corpo pode se confundir com o cargo.
O conjunto de partes que monta o ser passa a estabelecer uma relação funcionalista com o cotidiano e seus
vínculos empregatícios. Opera-se uma máquina, uma tecnologia, uma série de processos administrativos, um
comércio, no intuito de sentir que ainda se está funcionando. Que ainda há alguma função. Que presta para
algo —ou alguém— o funcionário.
O desemprego vem, então, como a descaracterização do personagem trabalhador, aquele
necessário de ser encenado todos os dias para que seja possível cultivar uma real vida fora da esfera
profissional. Tal ruptura, para além das suas supostas bases técnicas e pragmáticas, como justificativas
clichês para se dispensar alguém sem justa causa, quebra também o corpo, não só em partes, mas nas
funções que cada uma delas parece ter para existir. Quebra-o por inteiro e o faz desconhecer a si enquanto
capaz de manter o sustento no dia seguinte. Um corpo desconhecido. É o fim da sensação de utilidade e a
causa de seu medo quase paralisante. Uma justa causa para tamanho temor, compreendemos.
Começou ele pelas mãos, mas a tudo sentiu tremer. Os olhos tentavam enxergar saídas de
emergência para a situação financeira. A boca seca não dizia, os ouvidos zuniam e voz nenhuma vinha para
lhe confortar —o que ecoava em sua mente era a pergunta repetitiva, mania anunciada na mesma velocidade
que o desligamento: "Como vou contar para a família e pagar as contas?". Peito mais subia que descia, e no
descompasso do respiro, nenhum alívio. Crise disso, crise daquilo, ansiedade e angústia já não mais se
distinguiam uma da outra. Acharam um ponto de convergência: a paúra. As pernas inquietas a balançar não
sabiam para onde ir, por onde começar a procurar outro carreiro para recolocar o corpo nas trilhas de suas
funções que garantiam o sustento.
De que servia a língua agora? E os argumentos? De que servia sua realidade concreta, uma vez que
era no abismo da abstração onde se findava o mais sólido dos fatos: sem dinheiro não se dura e duro não se
vive. Ainda assim, é com a carne do pescoço rija que ele mira o nada e desenha no horizonte a imaginária
linha reta que ilude ao promoter alguma direção e estabilidade. O zunido diminui. Passa a ganhar um ritmo
lento, primeiro opressivo, depois desolador, triste. A cor escurecida de sua pele parece ser a única a não ter
perdido a função junto com a demissão. Ao encobri-lo, cantou um blues.
A depender das posições no tabuleiro do serviço, há quem jogue —por prazer ou horror— com os
peões para não comprometer reis e rainhas. Pelas bordas, esmagam feito as torres, condenam como os
bispos ou simplesmente saltam de oportunidade em oportunidade montados nos alazões a pisotear o que
lhes obriga a fazer curva. Os peões, como se sabe, não jogam, de fato. Os peões são jogados.
Em 2023, o Instituto Cactus lançou o iCASM (Índice Instituto Cactus — Atlas de Saúde Mental) no
intuito de levantar dados sobre os diferentes aspectos da vida social que impactam na psique da população
brasileira. Destacou-se um alerta sobre a condição das pessoas desempregadas. Estão elas entre as mais
abaladas psicologicamente e, com isso, pode-se supor, suscetíveis às psicopatologias que crescem a cada
ano no país.
As mãos, ainda diante dos olhos, seguram-se. No toque, parecem lembrar para que servem.
Recobram a função. As mãos servem para carregar o recomeço.
Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/>. Acesso em: 08 mar. 2024