A sociedade do medo
O filósofo Vladimir Safatle afirma que o medo se
transformou em um elemento de coesão de uma
sociedade refém de um discurso de crise permanente
[...]
No seu Quando as Ruas Queimam: Manifesto pela
Emergência, você diz que nossa época vai passar
para a história como o momento em que a crise virou
uma forma de governo. Você está falando do medo
que é gerado pela crise?
Sim, como efeito. É importante entender como o
discurso da crise se transformou num modo de gestão
social. As crises vêm para não passar. Por exemplo, nós
vivemos numa crise global há oito anos. Isso do lado
socioeconômico. No que diz respeito aos problemas de
segurança, vivemos uma situação de emergência há
quinze anos, desde 2001. Ou seja, são situações nas
quais vários direitos vão sendo flexibilizados, em que os
governos vão tendo a possibilidade de intervir na vida
privada dos seus cidadãos em nome de sua própria
segurança. É muito mais fácil você gerir uma sociedade
em crise. Então, a sociedade em crise é uma sociedade,
primeiro, amedrontada; segundo, é uma sociedade
aberta a toda forma de intervenção do poder soberano,
mesmo aqueles que quebram as regras, quebram
as normas constitucionais. Como estamos em uma
situação excepcional, essas quebras começam a virar
coisa normal. Esses discursos a respeito da luta contra a
crise são muito claros no sentido de impedir a sociedade
de reagir. Não se reage porque “a situação é de crise”.
E aí entra o medo.
Exatamente. Aí entra um pouco essa maneira de
transformar o medo num elemento fundamental da
gestão social. Ou seja, o medo produzido, em larga
medida, potencializado, administrado, gerenciado. É o
gerenciamento do medo como única forma de construir
coesão hoje em dia. Nós podemos construir coesão a
partir da partilha de ideias; só que, quando a sociedade
chega no ponto em que ela desconfia dos ideais que
lhe foram apresentados como consensuais, quando
desconfia das gramáticas sociais que são responsáveis
pela mediação dos conflitos, não resta outra coisa a não
ser um tipo de coesão negativa. Não coesão por algo
que todos afirmam, mas uma coesão através de algo
que todos negam.
Quando você fala da gestão da crise, quem são os
agentes? O poder constituído do Estado, os agentes
financeiros, o corpo social?
De fato, o discurso da maneira como eu estava colocando
pode dar um pouco a impressão de que há uma espécie
de grande sujeito por trás. Eu diria que o que acontece
é: nós partilhamos de um modo de existência que, por
não conseguir realizar as suas próprias promessas, e
também por impedir uma abertura em direção a outros
modos de existência, começa a funcionar numa chave de
conservação. É importante falar de modos de existência
porque isso tira um pouco a figura do sujeito que delibera.
Então temos, sei lá, o poder do Estado, a burocracia
que controla o poder do Estado, o capital financeiro.
É inegável que haja de fato projetos de grupos nos
modos de gestão social, mas para além disso há uma
coisa muito mais brutal: uma forma de racionalidade
que se transformou para nós em um elemento quase
natural, que faz com que todos comecem a pensar
dessa maneira. Essa forma de racionalidade, que acaba
operando esses processos de dominação, deixa uma
situação mais complexa. Não se trata simplesmente de
subverter o poder, mas de pensar de outra maneira, o
que é muito mais complicado do que pode parecer.
Quais são os instrumentos de que dispomos pra
romper com essa racionalidade, com esse circuito
baseado no medo? O que fazer?
Tenho duas colocações a fazer. A primeira é: muitos
acreditam que a melhor maneira de se contrapor a
circuitos de afetos vinculados ao medo seja constituir
outros circuitos vinculados aos afetos que seriam o
oposto ao medo – por exemplo, a esperança. Só que
aí há uma reflexão muito interessante, de toda uma
tradição filosófica, de insistir que o medo e a esperança
não são afetos contraditórios – são complementares.
O que é o medo a não ser a expectativa de um mal
que pode ocorrer? O que é a esperança a não ser a
expectativa de um bem que pode ocorrer? Quem tem a
expectativa de que um mal ocorra, também espera que
esse mal não ocorra. Da mesma maneira, quem tem a
expectativa de que um bem ocorra, teme que esse bem
não ocorra. Então, a reversão contínua de um polo a
outro, da esperança ao medo, é uma constante, porque
são dois tipos de afetos ligados a um mesmo modo de
experiência temporal. São afetos ligados à projeção de
um horizonte de expectativas. Nesse sentido, toda forma
de pensar o tempo de maneira simétrica vai produzir
resultados simétricos. Então, um outro afeto seria
necessariamente um afeto que teria uma outra relação
com a ideia de acontecimento.
[...]
Freitas, Almir. Disponível em: .
Acesso em: 27 set. 2017 [Fragmento adaptado].