INSTRUÇÃO: Leia o texto I para responder à questão.
TEXTO I
Não as matem
Lima Barreto
Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e
suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência
de um sentimento que parecia ter morrido no coração
dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.
O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de
carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas
bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça,
com a bala na espinha, veio morrer, dias após, entre
sofrimentos atrozes.
Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do
ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões
de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua
ex-noiva e matou-a.
Todos esses senhores parece que não sabem o que é a
vontade dos outros.
Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o
seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam
muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o
certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro,
enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que
é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.
O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o
dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a
alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.
Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas
adúlteras; agora temos os noivos que matam as
ex-noivas.
De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de
supor que quem quer casar deseje que a sua futura
mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima
liberdade, com a melhor boa vontade, sem coação de
espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes
desejos; como é então que se castigam as moças que
confessam não sentir mais pelos namorados amor ou
coisa equivalente?
Todas as considerações que se possam fazer, tendentes
a convencer os homens de que eles não têm sobre as
mulheres domínio outro que não aquele que venha da
afeição, não devem ser desprezadas.
Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a
mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.
O esquecimento de que elas são, como todos nós,
sujeitas a influências várias que fazem flutuar as suas
inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus
amores, é coisa tão estúpida, que só entre selvagens
deve ter existido.
Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a
eternidade do amor.
Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la
nas leis ou a cano de revólver é um absurdo tão grande
como querer impedir que o sol varie a hora do seu
nascimento.
Deixem as mulheres amar à vontade.
Não as matem, pelo amor de Deus!
Vida Urbana, 27-1-1915.