Quando no futuro eles olharem para nós
Vivemos numa época assustadora, em que é difícil imaginar os seres humanos
como criaturas racionais. Onde quer que estejamos, deparamo-nos com a brutalidade e a
estupidez, a tal ponto que nada mais há para se ver: retornamos ao barbarismo, processo
que somos incapazes de deter. Contudo, embora isso seja real, creio que se deu um
agravamento generalizado; e, exatamente porque as coisas estão tão assustadoras,
ficamos paralisados, e não percebemos – ou, se percebemos, não lhes damos a devida
atenção – as forças igualmente poderosas que existem do outro lado: a razão, a sanidade e
a civilidade.
Creio que, quando a futura humanidade olhar para o nosso tempo, ficará
espantada, particularmente, com o fato de que nos conhecemos mais agora do que nossos
ancestrais se conheciam. Mas muito pouco do que sabemos foi posto em prática. Houve
uma explosão de informações a nosso respeito, informações resultantes da capacidade
ainda infantil da humanidade de se observar objetivamente. Isso diz respeito aos nossos
padrões de comportamento. As ciências em questão são às vezes chamadas de ciências do
comportamento e estudam como nos comportamos como indivíduos e em grupo, e não
como imaginamos que nos comportamos e, agimos. Estudam nosso comportamento da
mesma maneira que estudamos, imparcialmente, o comportamento de outras espécies.
Essas ciências sociais ou comportamentais são precisamente o resultado de nossa
capacidade de agirmos de maneira imparcial em relação a nós mesmos. Uma enorme
gama de novas informações é obtida através de universidades, institutos de pesquisa e
talentosos diletantes. Entretanto, nossa maneira de nos governarmos não se modificou.
Nossa mão esquerda não sabe – não quer saber – o que faz a direita.
Creio que essa seja a coisa mais extraordinária que há para ser estudada a nosso
respeito, como espécie. E a humanidade do futuro irá se admirar disso, assim como nos
admiramos da cegueira e da inflexibilidade de nossos ancestrais.
LESSING, Doris. Prisões que escolhemos para viver. Trad. Jacqueline K. G. Gama. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1996. Adaptado