texto para responder à questão.
Eu vos abraço milhões
De uma coisa posso me orgulhar, caro neto:
poucos chegam, como eu, a uma idade tão
avançada, àquela idade que as pessoas costumam
chamar de provecta. Mais: poucos mantêm tamanha
lucidez. Não estou falando só em raciocinar, em
pensar; estou falando em lembrar. Coisa importante,
lembrar. Aquela coisa de “recordar é viver” não passa,
naturalmente, de um lugar-comum que jovens como
você considerariam até algo meio burro: se a gente se
dedica a recordar, quanto tempo sobra para a vida
propriamente dita? A vida, que, para vocês,
transcorre principalmente no mundo exterior, no
relacionamento com os outros? Esse cálculo precisa
levar em conta a expectativa de vida, precisa
quantificar (como?) prazeres e emoções. É difícil de
fazer, exige uma contabilidade especial que não está
ao alcance nem mesmo das pessoas vividas e
supostamente sábias. Que eu saiba, não há nenhum
programa de computador que possa ajudar — e,
mesmo que houvesse, eu não saberia usá-lo, sou
avesso a essas coisas. Vejo-me diante de uma
espinhosa tarefa: combinar muito bem a vivência
interior, representada sobretudo pela recordação e
pela reflexão, com a vivência exterior,
inevitavelmente limitada pela solidão, pela
incapacidade física, pelo fato de que tenho mais
amigos entre os mortos do que entre os vivos. E, de
novo, qual a fórmula adequada para essa
combinação?
[...]
Não sei. Só sei que recordar é bom, e é das
poucas possibilidades que me restam, de modo que
recordo. É uma espécie de exercício emocional, é um
estímulo para os meus cansados neurônios, mas é
sobretudo um prazer. Um prazer melancólico,
decerto, mas um prazer, sim, resultante da facilidade
com que evoco pessoas, acontecimentos, lugares,
uma facilidade que às vezes surpreende a mim
próprio. Para alguns, mesmo não muito velhos, o rio
da memória é um curso de água barrenta que flui,
lento e ominoso, trazendo destroços, detritos,
cadáveres, restos disso ou daquilo; para mim, não: é
uma vigorosa corrente de água límpida e fresca.
SCLIAR, Moacyr. Eu vos abraço milhões. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010, p. 7-8.